Casas, passado e presente

Acredito que a casa, numa visão de sua estrutura programática, é a instituição social que menos se modificou em todos os tempos; seu perfil, suprimido ou reduzido em alguns tipos de função e mesmo com toda a tecnologia incorporada segue fundamentalmente o mesmo.

A senzala diminuiu, transformando-se em DCE; os banhos, ofertados como símbolo de status, aumentaram quantitativamente e se particularizaram; a cozinha nem sempre é mais o coração da casa, mas está ali junto à senzala; o quintal, antes produtivo, virou jardim contemplativo; a sala de visitas só conseguiu sobreviver como sala de TV; o quarto de hóspedes, acompanhando a epidemia neoliberal, agora é local de trabalho do ex-empregado (melhor dizendo: do empreendedor autônomo), que também pode exercer sua profissão no terceiro reversível.

Em resumo, é como vemos nos anúncios dos jornais: “Santa Inês – Casa 3/4 qts bhos lv 2sl cz ár serv DCE gar – Ót pço”; ou “Pampulha – Ót casa col nova 3q ste cp cz bh ár dce gar p/2 car etc ót local tr. 4434080 pj2542”.

Mas, para a arquitetura e para os arquitetos, a casa é e deve continuar a ser o grande laboratório de pesquisa, que permite caminhar pelo histórico, pelo social, pelas técnicas, com grandes possibilidades de se explorar o jogo formal.

O cliente da residência unifamiliar possibilita, ao arquiteto, a mais íntima das relações, a mais visceral das pesquisas. Juntos, dialogam a partir dos sonhos do futuro morador, discutem os limites físicos e econômicos, as dificuldades e as possibilidades; como um psicólogo eventual, o arquiteto penetra no imaginário desse morador, traduz as querenças dentro do seu conhecimento e informa, propõe, corrige, concorda, discorda até dar forma às fantasias.

A experiência com este ciente especial é parte de um processo com dinâmica exclusiva: é o espaço, dentro da atividade do arquiteto, onde esta proximidade, também visceral, gera subsídios que alcançam os níveis financeiros, técnicos, passam pelos dramas e sonhos e atingem estereótipos e inovações, conformismo e rebeldia lugar em que o profissional exercita mesmo em pequena escala todas as relações previstas pelo discurso arquitetônico, sejam elas sociais, amorosas, urbanas, psicológicas, formais e tantas outras.

No seu livro Casas en Venta (GG, Barcelona, 1981), B. J. Archer diz o seguinte:

“Uma casa é, em primeiro lugar, um objeto geométrico de vazios e sólidos equilibrados se analisados racionalmente, mas é também um objeto que deveria conter metáforas que incluam o corpo humano e a alma. A arquitetura da casa particular tem buscado a todo momento interpretar e dar forma ao sonho. Supondo a existência de sonhadores de casas e construtores de casas, o que os une? Com frequência, uma casa é a interpretação dos desejos do usuário, mas em alguns casos o cliente acaba por viver em uma casa ideal para o arquiteto.”

Três anos depois, escrevíamos (Jô Vasconcelos, Éolo Maia e eu, na introdução do capítulo Residência do livro 3 Arquitetos, da AP Cultural):

“Certa vez, Charles Moore escreveu que ‘uma boa casa não só fala do material que está feita mas também dos ritmos intangíveis do espírito e dos sonhos da vida e das pessoas. Seu fragmento só é uma minúscula parcela do mundo real, mesmo que este lugar esteja feito para parecer um mundo inteiro’. (…)

O ser humano possui uma necessidade primária de comer, fazer sexo e habitar. A habitação só satisfaz ao morador se o arquiteto, encarregado de proporcionar estes prazeres, conseguir interpretar as suas aspirações, suas necessidades físicas e psicológicas.

Por isso as casas são diferentes. Por isso devem possuir personalidades diversas e adequadas aos moradores. Cabe ao arquiteto colocar frente ao morador espaços familiares às suas aspirações, cheios de surpresas e tranquilidade para que se possa ter maior consciência e amor ao espaço habitável.

É necessário que a casa fale com os seus habitantes.

Daí ser também necessário que a casa transmita todas as mensagens diferenciadas a cada situação: alegres, sérias, comprometidas, irônicas, jovens, velhas, frívolas ou importantes.

A grande maioria das residências brasileiras é nostálgica, triste, massificada, deselegante. Na era dos computadores, deseja-se viver na casa dos avós. Essa nostalgia reflete o desvinculamento cultural com a contemporaneidade.

A retomada dos reais anseios físicos e psicológicos é um passo para que a casa sirva às aspirações humanas e poéticas.

Verifica-se, então, que a grandeza da arquitetura reflete mais no poder de conceber ‘aquilo’ que é casa, do que a habilidade em se ‘desenhar’ uma casa. A casa só é desenhada depois de concebida é aí é que começa então o ato de se fazer arquitetura”.

A expressão arquitetônica e em projetos de casas ela é dramaticamente importante, laboratório mesmo, como já disse se torna válida quando traduz, ou antecipa, a sua temporalidade. É uma expressão contínua. As terminologias passam, ficam para os críticos, mas a renovação constante do fazer a arquitetura é sua essência e perenidade através dos tempos.

Neste ponto, valem as perguntas: mas então quem são esses proprietários? Quem são estas pessoas que, junto com os arquitetos, permitem que se faça arquitetura?

Em cada texto descritivo dos projetos aqui apresentados, acrescentei as particularidades que se destacam nestes diversos clientes. Falando das técnicas, dos custos, dando um histórico geral de todos os momentos onde estivemos arquiteto e cliente juntos nessa transposição de matéria e sonho para o lote x da quadra y.

É importante destacar, ainda, a questão formal: a residência unifamiliar permite que este exercício seja praticado com uma liberalidade nem sempre possível em outro tipo de projeto.

Este livro fala também de processos de criação, maneiras de incorporar programas, sugestões didáticas nos quais certos espaços fechados ou abertos vêm ampliar o uso dessas casas ou da multiplicidade de usos que um mesmo espaço permite; uma viagem que vai do intimismo, do isolamento, da silenciosa contemplação aos mais diferentes níveis de trocas sociais, ligados que estão às personalidades que contribuíram para que fossem gerados tais espaços.

Afinal, o que diferencia uma casa da outra é a capacidade que o arquiteto tem de perceber nuanças, detalhes que identifiquem este pequeno grupo junto à sua comunidade, à sua cidade e conseguir traduzir seus anseios espaciais, programáticos e estéticos principalmente porque, de maneira geral, as residências de hoje diferem pouco, no seu programa, das nossas antigas moradias. Como regra básica, já disse, o banheiro passa a ter maior importância e se individualiza, incorporando-se a alguns quartos; a cozinha diminui e se robotiza; a senzala se resume a um ou dois pequenos quartos, normalmente junto ao serviço, também pequeno, que se incorporam ao corpo principal da casa.

Voltando às comparações: novidades como o automóvel ficam onde deveria estar o antigo estábulo; as varandas podem existir, ou não; a sala de visitas desaparece, tudo passa a ser visitado normalmente atrapalhando o horário da novela. O estar íntimo, quando existe, é quase uma antiga alcova, todos de pijama, fazenDo a passagem social/íntimo; a cômoda com o lava-mãos é substituída pelo lavabo.

No exterior é talvez onde iremos encontrar maiores modificações: a casa já não é no alinhamento, na rua, com suas janelas de ver-passar; ganha um afastamento frontal, por força de lei, fortalece seus muros, acrescenta o interfone e já não se batem mais palmas. O quintal vira o lazer ocupando o lugar do pomar, das criações, dos serviços gerais e agora é área da piscina, churrasqueira, pequenos jardins e, eventualmente, um barracão com lavanderia, espaço para o hobby da marcenaria, pintura, cerâmica etc. Poucas mudanças, se imaginamos o quanto a sociedade está mais complexa, ligada às transformações do mundo globalizado, cheio de infoways e fibras óticas.

A casa, no entanto, se mudou tão pouco quanto ao programa, mudou e mudou muito formalmente. Com isso, o arquiteto conhecido por sua “linguagem”, uma espécie de marca registrada simbolicamente representada por um enfoque formal contínuo, passa a ser vagarosamente substituído pelo arquiteto “tradutor”, que entende e incorpora as culturas regionais, particulares, peculiaridades, técnicas, meio ambiente dizendo do sol, do clima, da paisagem, transformando o objeto arquitetônico em resposta específica, única, sem possibilidade de repetição literal. Ou, como queria demonstrar: numa relação visceral como é a do arquiteto com o morador é impossível compartilhar tantos segredos, tantas idiossincrasias, com outras situações. Nenhuma delas será tão similarmente específica.

Outro aspecto que é necessário e urgente destacar diz respeito a uma maior divulgação da função do arquiteto como profissional de área específica, de importância primordial na relação projeto/obra, na resolução dos problemas, na participação do planejamento, da obra e do pós-obra. Por outro lado, vale lembrar que o arquiteto, como criador de projetos melhor “traduzidos”, assume suas responsabilidades profissionais, devidamente acionado para suas funções, na procura ideal ou o mais próximo do ideal procurado.

A seguir, transcrevo algumas matérias publicadas em alguns jornais, em linguagem clara, abrangente, procurando atingir diversos tipos de leitores para pequenas questões relativas ao projetar, planejar, antever.

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