1987: Museu do Homem Americano

croqui projeto Museu do Homem americano - 1987  Syllvio de Podestá

Arquitetos: Sylvio E. de Podestá, Éolo Maia e Jô Vasconcellos
Colaboração: João Henrique, Tarcísio Cardoso, Marco Antônio Rezende, Maria Beatriz Clímaco, Marcos Marinho, Sérgio Romano,Telma Palazzo, Astrea Soares, Carlos Alenquer, Siron Franco, Hélio Chumbinho, Jean Pierre Bonnereau, Marcus Vinícius Ribeiro, Odair Pinto e Ângela Negromonte Scheibe
Local: São Raimundo Nonato, PI
Maquete: Paulinho Maquetes
Projeto: 1987

“Contrariando as forças destrutivas, as dificuldades das entidades museológicas brasileiras e a inércia, deixamos aqui registrado um desejo de mudança, na certeza de que terá ressonância nos tempos futuros”. Ciça França Lourenço

Introdução

Um museu não é simplesmente um amontoado de peças e indicações sobre determinado assunto, espalhadas num determinado espaço físico, para visitação pública. Isso o sabemos todos nós. A própria concepção do Museu do homem americano, a partir das propostas do grupo de cientista e pesquisadores que está a frente do projeto, somente reafirma esse pressuposto. Afinal, não se deseja apenas um museu, na concepção antiga, mas sua integração à vida da comunidade, através de atividades para o presente com vista ao futuro, isso num lugar predominantemente voltado para o passado. Esta “volta para o futuro”, na verdade, enseja mais do que simplesmente um projeto arquitetônico: temos aí, interligadas, disciplinas que tratam antropologicamente da questão, passando por suas implicações psicológicas, até chegarmos ao próprio modo construtivo, de engenharia mesmo de se levantar um museu utilizando materiais locais dentro das características da região.

À primeira vista, pode parecer presunção tal colocação. No entanto, estamos convictos da simplicidade de nossa filosofia, com que chegamos ao anteprojeto, nesse que consideramos um concurso de grande importância.

Recebendo os dados da programação para o anteprojeto, a primeira providência foi a formação de uma equipe pluriprofissional, para dar início a estudos e coleta de informações que nos dessem subsídios para a formação das primeiras idéias. Após um período de reuniões e pesquisas com essa equipe, ficou constatada a necessidade de uma visita ao sítio onde ficaria o museu. Seria como dissemos acima, parafraseando um filme, nossa volta ao futuro.

O futuro: o museu voltado para a promoção dos habitantes da região. O presente: as montanhas vermelhas e pedregosas, o terreno amarelado da caatinga, as anotações em bloco de papel procurando preencher esse espaço. O passado: o homem americano e sua herança cultural, deixada para nós, do presente, e inspirando o homem americano que desejamos para o futuro.

Conhecer a cultura regional, a cidade, seus habitantes, o clima, os costumes, era fundamental, em termos podemos dizer antropológicos, ou mesmo humanos, absolutamente pessoais. Em termos arquitetônicos: conhecer as técnicas construtivas do local, os materiais disponíveis. Já na viagem de ônibus, entre Petrolina e São Raimundo Nonato, na altura de Remanso, conhecemos o primeiro morador da cidade, o Baltazar, solícito, que nos introduziu na sociedade local. Fomos apresentados a outros moradores da cidade, conversamos, ouvimos casos, refletimos sobre as diferenças entre a cultura de uma cidade na caatinga e a cultura de outra cidade distante, mas que tem como característica básica, além de seu belo horizonte, uma população formada por pessoas que vieram tanto do sul do estado – fronteira com São Paulo – como do nordeste – fronteira com a Bahia, zona solidária na miséria da seca, região da Sudene. Uma fábrica de cerâmica de propriedade de três irmãos nos permitiu pesquisar materiais e metodologias construtivas adotadas no local. As construções existentes, a mão de obra disponível, além do trabalho da Fundação do Homem Americano, respeitado pela comunidade e da sua filosofia e plano de trabalho, detalhados pelo professor José Lopes, nos permitiu ter uma noção bem aproximada da realidade que iríamos trabalhar.

Evidentemente não nos passa pela cabeça que esse trabalho de campo – sem a presença de um antropólogo, um sociólogo, um psicólogo social, além de outros profissionais pudesse nos dar uma visão absolutamente científica do que buscávamos conhecer. Mas temos uma realidade brasileira seja da caatinga ou da pretensa metrópole -, subdesenvolvida, que temos de superar pelos nossos próprios meios; e na falta ainda para usar uma imagem cinematográfica de se conseguir formar uma caravana “roliday”, eis que a solução plausível foi a visitação in loco de dois dos três arquitetos que fazem o projeto.

Circulamos no terreno, subimos e descemos a pequena elevação. E, influenciados pela bela e principalmente forte paisagem local, começamos a delinear as circulações naturais e a futura locação do volume a ser planejado.

Proposta do futuro museu

Após voltarmos de viagem, de posse das informações colhidas, alguns princípios básicos determinaram a formulação da filosofia do anteprojeto apresentado.

1. Criar uma construção harmonizada com a paisagem, que personifique o prédio como um ponto de referência à importância do trabalho da fundação.

2. Que este ponto de referência, o próprio museu, possibilite o atendimento ao programa proposto dentro dos parâmetros funcionais, com espaços adequados nas suas dimensões, na sua iluminação e seu arejamento.

3. O uso de materiais simples e regionais não impede que a arquitetura do projeto seja bela e econômica, concorrendo para uma expressão cultural local.

4. O anteprojeto apresentado deve possibilitar sugestões de melhorias pela comissão julgadora, para complementar as aspirações da fundação.

5. Deve possuir externamente uma leitura figurativa e internamente uma linguagem concreta, pois é um espaço de amostragem de culturas e técnicas figurativas de nossos antepassados. A sua arquitetura, internamente, servirá como um espaço uterino (abóbadas) pronto a abrigar e a realçar didática e historicamente as peças apresentadas. Para tal, o conjunto de sua arquitetura deve ser atual e inovador, criando o paralelo entre o futuro e o passado da constante evolução do ser humano.

Implantação

Analisando o terreno, julgamos conveniente criar o museu na área mais elevada da colina existente. Tal opção foi feita em função de melhor visibilidade da construção, melhor aeração e, ainda, melhor possibilidade de observar a vista existente pelos mirantes externos propostos. Um anexo do museu no nível inferior com os laboratórios, gabinetes, sala de reunião e biblioteca, completa o volume implantado. Devido à declividade do terreno, os depósitos também se situam nesse nível inferior. Tal locação facilita a descarga de caminhões e as peças têm acesso à área de exposição através de uma escada, suave e ampla auxiliada por planos inclinados.

O museu possui, na área de acesso de público, uma base escalonada revestida de seixos rolados em muretas de concreto ciclópico acompanhando as curvas de nível do terreno. Uma rampa de pedestre parte do acesso da estrada até a entrada do museu, seguindo a topografia local. O acesso de carros e serviço é efetuado pela cota mais baixa do terreno, distribuindo-se nos estacionamentos, pátios de descarga e atendimento aos galpões situados à direita, onde acontecerão os cursos visando ensinamentos elementares de higiene, construção de latrinas, olaria, cerâmica, couro, casa do zelador, horta, etc.

Setorização

O prédio do museu é um conjunto de alas em torno de um pátio central de 30×30 m. Pela rampa de pedestres e pelo estacionamento, se chega a um pátio externo próprio também para exposições ao ar livre. Uma escultura figurativa de cerâmica, de um consagrado artista brasileiro, serve como marco e referência atual aos desenhos dos antepassados. Por intermédio do pátio externo, se tem acesso à entrada, protegida do sol da tarde por um volume quadriculado feito de peças de aroeira e envolvido por vegetação. No hall principal encontramos o balcão de informação, livraria, pequeno acervo e controle.

Na continuidade do hall uma lanchonete e instalações sanitárias – iluminadas e ventiladas pelo pátio central – complementam o conjunto. A circulação dos visitantes é feita no sentido anti-horário. Inicialmente, deparamo-nos com a sala de exposições temporárias. Depois, exposições permanentes tendo a sala intermediária pé direito duplo. Tal proposta possibilita a reconstituição, através de montagens, diorama e projeções, das condições de vida do homem desde 32.000 anos atrás até a atualidade.

As circulações destes ambientes são feitas por galerias abertas, que envolvem o pátio interno. Nos extremos existem mirantes para que os visitantes admirem a paisagem. Julgamos que nas áreas de exposição os visitantes devem ter suas atenções concentradas nas informações apresentadas. Após o recebimento dessas informações, há a possibilidade de alternância com a observação e a contemplação com a paisagem em ângulos que a valorizem.

As galerias conduzem os visitantes também a um pátio interno para descanso e observação de peças porventura aí expostas. O uso do pátio interno cria um referencial na construção, facilita a aeração e serve também como uma área de descontração, a exemplo de inúmeros museus internacionais, como o Museu Nacional de Antropologia, no México. O pátio interno tem uma cobertura de telhas sustentada por uma estrutura de aroeira que produz uma área de sombra no forte calor da região. Em volta desta estrutura, paredes circulares com aberturas servem de referência às primeiras construções do homem (dolmens) e criam um espaço imaginário com espelhos d’água na sua base para atenuar o calor (estes espelhos d’água podem ser suprimidos caso limitações técnicas os condicionem).

A esquerda do hall principal, um auditório para 100 pessoas, I.S., e pequena copa que serve ao museu e pode ser utilizada independentemente das instalações, pelo público e cientistas. O piso principal do museu (hall, salas de exposições, auditórios, etc.) está na cota 114,5, devido à topografia. Os depósitos, fototeca, laboratório fotográfico, vestiários e refeitório estão situados abaixo, na cota 111,5. Estes depósitos têm acesso às áreas de exposição através de uma ampla escada de serviço e recebem os materiais por uma plataforma de serviço ou descarga.

Os laboratórios, gabinetes, salas de reunião e biblioteca estão na cota 110,0. O estacionamento dá acesso direto para esta área administrativa, que é interligada aos depósitos e ao restante do museu.

Materiais construtivos

Analisando a região de São Raimundo Nonato, observamos a existência de materiais regionais e técnicas construtivas que poderão ser utilizados, valorizando a cultura local e economicidade construtiva.
Existe uma cerâmica que produz tijolos e telhas de boa qualidade e encontramos operários que dominam a técnica de construção de abóbadas e cúpulas de tijolo. Já construímos prédios públicos com esta técnica, numa região semelhante, com ótimos resultados. As cúpulas e abóbadas de tijolos dão ótimas condições de proteção térmica, criando um espaço ideal para exposições. Propomos então que as coberturas das salas de exposição sejam construídas de abóbadas autoportantes de tijolos em arcos plenos, aproveitando tecnologia e materiais locais.

Estas abóbadas vencem vãos de 4,5 e 6,0 metros e possuem alas laterais e circulações cobertas por telhas cerâmicas apoiadas em tesouras de madeira (peroba, angico etc.). Internamente, as abóbadas serão pintadas de branco, realçando a claridade e as peças expostas.

Como a aroeira na região é abundante e tem preço accessível, propomos a sua utilização nas estruturas dos mirantes, nas proteções do sol da tarde no hall e na estrutura da cobertura do pátio central. Como na região também encontramos grande quantidade de seixos rolados, propomos a utilização de muros de concreto ciclópico na base do museu, nas paredes externas da área administrativa. Tal medida facilita o controle térmico e a manutenção externa, integrando o prédio à paisagem. Os pisos serão de pedras serradas da própria região.

As paredes externas do museu, que nascem desta base de concreto ciclópico, serão revestidas de cerâmica branca, sugerindo o nascimento de um contraste equilibrado com as montanhas e o amarelado da caatinga.

Ventilações iluminações

Os materiais locais selecionados facilitarão as ventilações através de um desenho peculiar e o projeto propõe as iluminações com a correta utilização do gráfico solar. O eixo de simetria define o sentido longitudinal das abóbadas onde o ar circula e esta ventilação é auxiliada por “chaminés” com aberturas alternadas. Uma das aberturas capta ou ‘suga’ o vento dominante e a outra retira o ar quente viciado. Tal sistema, desenvolvido a partir de um princípio do arquiteto egípcio Hassan Fathy, já foi construído com êxito. Com estas aberturas controladas, eliminamos toda ventilação mecânica, devolvendo à construção toda organicidade ambiental em respeito à situação climática existente. O museu possui apenas uma abertura para o sol do poente, a entrada do hall principal, que é protegida por quadros tridimensionais de treliça de aroeira, que servem de ‘brise soleil’ e elementos simbólicos de identificação da entrada. Na área da administração, os dois gabinetes voltados para oeste possuem varandas e beirais como proteção e as aberturas das abóbadas recebem os ventos dominantes. A iluminação nas salas de exposição foi estudada de modo que as aberturas permitam a sua utilização natural. O uso noturno de iluminação artificial também foi previsto para adaptações futuras.

Paisagismo

A pavimentação externa é de seixos rolados, definindo bosques e áreas de vegetação de espécimes e árvores frutíferas da região. O portal de identificação da entrada do museu, ao lado da rodovia, é constituído de dois marcos verticais com seis metros de altura. Um é cilindro de pedra polida e o outro, um pilar retangular de aço inoxidável simbolizando o percurso da tecnologia humana através dos tempos. Entre os dois uma intenção comum: a criação, o desenvolvimento e a arte do ser humano.

Esperamos que este projeto traduza esta intenção.

Conclusão

Esta, a nossa proposta de volta ao futuro. Uma proposta que tenta, sempre, interligar as três dimensões imaginárias do tempo e, ao mesmo tempo se integra na paisagem não como um objeto alienígena, mas como amálgama de pedra polida e aço inoxidável.

Como proposta pós-anteprojeto, deixamos registrada a intenção de, numa segunda etapa e aí sem todas as limitações que o subdesenvolvimento impõe , poder aportar em São Raimundo Nonato com nossa equipe multidisciplinar. Nossa caravana ‘roliday’, um grupo que descobre o interior e dele tira uma compreensão do mundo, mesmo subdesenvolvido, por vezes amargo, por vezes irônico, outras triste, mas fundamentalmente uma visão de crença no futuro.

Uma inspiração alienígena, no texto (“De volta ao futuro”, filme norte-americano). Outra antropofágica (“Bye, bye, Brasil”, filme brasileiro). Além disso, todas as inspirações que estão citadas literalmente ou todas as outras que, de tão vividas, já se transmudaram em convicções.

A aparente desconexão, na verdade, traduz a “sensibilidade de estudiosos, políticos, filósofos, músicos, professores, arquitetos, urbanistas, artistas, sociólogos” , como diz Ciça França Lourenço, sobre a criação da pinacoteca do estado de São Paulo, que ela desejava livre das “forças destrutivas” do passado.
Não é, assim, uma fala do caos, da desorganização.

É e será, mais uma vez, a fala, a voz, o som e a inspiração da esperança.

Pós-conclusão

Ficou na esperança. Oficialmente vencedores, oficialmente afastados e substituídos por colegas nordestinos que alegaram presença sulista nos seus quintais. , assim, uma fala do caos, da desorganização.

Publicado será, mais uma vez, a fala, a voz, o som e a inspiração da esperança.

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