Casa e decoração

É dificílimo imaginar os objetos arquitetônicos sem seus órgãos da sua personalidade e as personalidades que se formam, mesmo nas dualidades.

Uma obra arquitetônica só é harmônica na soma dos seus complementares: na engenharia que a sustenta; no hidrosanitário que recolhe seus dejetos; na eletrificação que faz funcionar seus robôs e artificializa teatralmente sua luz; na decoração que com seu “decoro” especifica e particulariza as culturas do design, do arranjo, do conforto e das lembranças, transformando ambientes corretos mas vazios em provocações, em vida e relações: relações das partes com o todo. Respeita a paternidade e a reverencia. Esquece “estilos” e “épocas” para criar sua própria época e sua própria forma de vê-la ou estilizá-la.

Se a arquitetura, porventura, não incorpora a cultura, o culto, o prazer pelo local, pela sua relação com a cidade ou região onde se insere; se não procura sistematicamente o belo não tem como encontrar sintonia com a cidade.

Em contrapartida, se o interior particulariza as não-relações coletivas sejam elas familiares ou sociais, acaba contribuindo na formação de cidadãos neuróticos, exclusivistas e aculturados. Ou de pseudo-cidadãos capazes de trocarem o seu país, a sua cultura e a sua realidade do dia-a-dia, por um pato sovina e um rato assexuado; por um “cheeseeggburgersaladabacon” e 500 ml de coca, de cola ou de coca-cola.

A sintonia, ou melhor, a simbiose da arquitetura e da decoração única forma de real participação destas duas atividades sugere um certo “nacionalismo moderno”, que não evita o conhecimento do todo, mas o incorpora na cultura em que está inserido.

Deve ser simbiose (associação na qual há benefícios recíprocos): é algo como um atuação univitelina, gêmea, como alma gêmea.

Arriscando um estudo semântico e incorporando um léxico, quem sabe compreenderemos melhor os significados das palavras que hoje utilizamos para definir atuações, modelos. Mesmo porque, muitas vezes, nos assustamos ao perceber que, na verdade, são palavras que correspondem a pseudo-critérios, atuações paralelas, não complementares, que desvirtualizam a compreensão dos parâmetros desta necessária simbiose, e se perdem em subdivisões, sub-subdivisões etc.

Senão vejamos:

Decorar:
Adornar com decoração; arte de decorar, embelezar, enfeitar, ornamentar; ornamentação que complementa o ambiente arquitetônico; composta pelo que chamamos elementos de decoração, que vão desde a cor das paredes, murais, esculturas etc., aos móveis, cortinas, tapetes etc., que integram a arquitetura como espaço organizado.

Decorativo: Adjetivo de larga aplicação e que designa todo aquele elemento que possui condições de complementar o espaço arquitetônico. Isto é, que caracteriza a decoração como necessária à arquitetura.

Decorável:
Aquilo que se pode decorar.

Decorador: Aquele que decora, que aprende de cor, mas também o que enfeita, adorna, ornamenta.

Decoro:
Beleza moral resultante da honestidade; conformidade do estilo com o assunto.

Interior:
Íntimo, particular, que está dentro; seio, coração; interioridade: qualidade ou estado daquilo que é interior.

Decoração de interiores:
Destina-se à análise de espaços de grandes construções, como hotéis e empresas; como decoração, sugere o embelezamento de um ambiente preexistente.

Arquitetura:
Arte de compor e construir toda sorte de edifícios segundo regras e proporções convenientes; “[Arquitetura é] construção concebida com a intenção de ordenar plasticamente o espaço em função de uma determinada época, de um determinado meio, de uma determinada técnica e de um determinado programa” (Lúcio Costa); é a arte que deve ser concebida e realizada no sentido de criar um espaço ao mesmo tempo humano, social e plástico com intenção deliberada; o que preside o aparecimento da obra arquitetônica, que além do mais e de tudo, deve ser bela.

Arquitetônico: Designação de tudo aquilo que se refere à arquitetura ou que pertence à arquitetura.

Estilo:
Peculiaridades de obras de arte produzidas segundo certos princípios, numa determinada época, para determinado povo, segundo determinada época.

Estilizar:
Modificação introduzida com intenção plástica ou decorativa; dar estilo a algum objeto ou obra arquitetônica segundo regras peculiares e determinada fase da evolução artística.

Época: Momento histórico assinalado por um fato importante, tempo em que alguma coisa se sucede; era, período; fase de uma evolução que se caracteriza por uma determinada concepção de vida e um certo tipo de cultura.

Ecletismo: Movimento ou tendência resultante da falta de originalidade ou de caráter na obra arquitetônica; surge em determinado momento no qual existe o embate de idéias e o conflito de culturas.

Minimalismo: Menchevique, partido russo moderado com reivindicações mínimas, em oposição aos extremistas e radicais bolchevistas; busca de tensão formal e conceitual máxima com o uso de  restrito de formas e elementos; reação ao desperdício, à superprodução de informações; também pode ser chamado de Individualismo, de transcendência não-coletiva ou social, mas individual; precisão técnica (Paulo Mendes da Rocha); expressão de materialidade, reação contra a arquitetura estabelecida através de uma via pessoal (Tadao Ando).

Clean:
Livre de impurezas.

Moderno:
Dos tempos mais próximos de nós, dos nossos dias; recente, atual, hodierno (relativo aos dias de hoje);

Interior Moderno: Negação da existência anterior, uma nova “onda” usada a partir de “agora”. ( Marco Aurélio Keller Matarazzo – arquiteto).

É claro que são definições que, com o passar do tempo, sofrem acréscimos de sentidos, de conteúdo, e em alguns casos sérias deturpações. Vanguarda, por exemplo, é uma tendência futurista, marcada pela utilização dos elementos de estrutura metálica, tubos, telas e escadas metálicas com roldanas, deslizadores de nylon e borracha; no léxico, temos que vanguarda é o que vai na dianteira, o que marcha na frente, o que vem na frente o que é uma forma mais correta de apropriação do que ligar a palavra a alguns produtos industriais que, na verdade, são muito antigos.

Sobre Futurismo podemos ir mais longe: movimento modernista lançado pelo poeta italiano Marinetti e que se funda numa concepção exasperadamente dinâmica da vida, voltada toda para o futuro e no combate ao culto do passado e da tradição, melancolia e sentimentalismo; prega o amor das formas nítidas, concisas e velozes, é nacionalista e antipacifista; por extensão e depreciativamente, qualquer forma extravagante de arte.

Vejamos também certas formas, expressões, lugares-comuns que explicam ou adjetivam ambientes:
“Ousadia e modernidade contracenando com ar romântico.”

Ousadia: atrevimento, coragem e, sendo ousado, o esforçado, corajoso, audaz, atrevido. Romântico: diz-se dos escritores e artistas que no começo do século XIX abandonaram as regras de composição e estilo dos autores clássicos, predominando aí a sensibilidade e imaginação, o lirismo sobre a razão.

“Clima místico pelo uso da pirâmide energizada e tatami.” Um jeito faquir de incorporar num só ambiente espiritualidade e conforto.

“Cozinha high-tech.” O aço inox, por si só, não é capaz de estabelecer o uso high-tech.
“Quarto de hóspedes inspirado no ritmo do jazz”. Improvisado? Jazz: tipo de música nativa americana com ritmo forte estruturado em solos e improvisos.

Ou afirmações do tipo “Sou clássica com teor moderno. Refleti muito em fazer arquitetura mas preferi deixar o expontâneo fluir, o lado artístico aflorar, pois tenho o respaldo técnico dos meus assessores”. (Decoradora paulista).

Ou quando o cliente passa a participar:

“Costumo misturar tudo, desde o moderno ao clássico, passando pelo suntuoso, entretanto, mais importante que ter estilo é criar ambientes aconchegantes e harmoniosos que atendam aos anseios do cliente.” (A mesma decoradora paulista)

“(…) A campanha também ajudará a mudar alguns pré-conceitos, mostrando que o decorador trabalha em conjunto com o cliente e o mesmo participa ativamente do projeto respeitando, assim, seu estilo de vida.” (Desmistificação – ABD News). Apenas uma consideração: “Em conjunto com o cliente” define que se está considerando o cliente como elemento ativo, participante.

Um dos grandes reformulados do discurso atual da arquitetura, o americano Robert Venturi, em seu livro Aprendendo de Las Vegas diz que esses novos conceitos  resultaram de uma saudável controvérsia acontecida em 1972, quando se chegou à conclusão de que os arquitetos deveriam ser mais receptivos aos gostos e valores do povo “comum”, e ter mais pudor quando se elegem “heróis”, erigindo monumentos criados para si mesmos.

Estas considerações me levam a crer que a arquitetura e decoração ainda estão longe da sintonia e a  quilômetros de distância da simbiose.

Várias idéias nos atormentam quando tentamos praticá-las, quando tentamos entrar em sintonia, estar em simbiose; e quando essa tentativa é feita com a decoração cheia de discursos descritivos, cumulativos e perigosamente individualistas nos apavoramos com a arquitetura que deveria cuidar “das cidades como as casas e das casas como as cidades”, como dizia Artigas; essa mesma arquitetura que deveria rebater, como conceito, o que constata Olga Kruel, ao dizer que “cada vez mais as pessoas se voltam para a casa, para seu útero material, protegido da rua, da cidade, do mundo.”

Tanto a casa de hoje quanto os condomínios fechados são covardias, fugas da cidade desta cidade que deveria ser “como casa”, para que façamos das nossas casas algo como as cidades, representantes do seu tempo, abertas às suas modificações, com espaços para as lembranças, mas com muito espaço para o futuro.

Não deveríamos querer a casa de nossos avós para morar. Deveríamos ter a nossa da mesma forma que eles tiveram a sua. Abaixo a cômoda do século XVIII, o vaso chinês ou estereótipos parecidos. Museu aos portinaris e cavalcantis. Anunciem o último Baravelli, o novo Benjamim, o intrigante Siron e, se possível, o Tunga. Recusem o minimalistico fogão de lenha inoperante, decorativo e incompetente. Convoquem um elétrico de seis trempes, microondas e coisas assim, como exigimos em nossos automóveis o freio ABS, o air-bag, o computador de bordo e outras conquistas.

Não devemos fugir da história, do nosso tempo; mas refugiar-se numa casa estereotipada, em uma “Ilha da Fantasia”,  não convence.

Arquitetura e decoração só vão estar juntas quando forem uma só feitas para o mesmo caso e mesma intenção. (Para tanto precisando, antes de tudo, de arquitetura, de projetos que tenham qualidade para serem chamados de arquitetura; assim, e somente aí, permitir que com o conhecimento, a leitura que esta arquitetura estabelece com o seu tempo, inserir de entranhas, de tripas e coração e, claro, também de cérebro para que este corpo tenha vida e se sociabilize, participando do seu crescimento individual e contribuindo para o coletivo mais uma vez, leitura do seu tempo.)

Decoração sem sintonia com a arquitetura não existe. Por outro lado, se não existe arquitetura, não é decoração: é tratamento patológico, é choque anafilático. Se não existir um, não existe o outro.

A efemeridade do consumo sugere palavras poderosas tipo “tendências”, que nos levam a etnias, culturas exóticas, country chic etc., num jogo de manipulação de pigmentos, materiais não contemplados em outra estação substituídos pelo “futurismo” do inox ou de certo tipo de pedra, que agora financia a temporada. Não tem pau marfim que aguente isso.

Imaginemos que se proibissem, como exercício didático, o acesso dos profissionais de arquitetura e de decoração às revistas importadas e as viagens “copiativas” às feiras americanas e européias. Das duas uma: ou teríamos um bando de gente sem saber o que fazer, ou grupos procurando compreender como fazer, aprendendo e apreendendo sua cultura, acrescentando informações ou transformando-as; e se assim não fizerem, morrem. A cultura faz parte da nossa sobrevivência e nela não existe lugar para o quarto em estilo romântico e baseado no jazz…

Esta fragilidade de tentar vender para a mídia “estilos” nem sempre compreendidos, fragiliza enormemente essas atuações, essa coisa bela, cheia de conteúdo, que é preencher a arquitetura fazendo história.
Voltando ao Artigas: ele diz que “defender o nosso patrimônio cultural não é tão-somente, como acreditávamos ainda há pouco, resguardar das intempéries e do esquecimento monumentos do passado mais longínquo. Não é travar uma luta (…) contra todas as formas que, por novas, se tornem cosmopolitas. Por outro lado, o cosmopolitismo tem suas próprias leis, seus argumentos próprios; ele não comparece desacompanhado da exploração econômica. No terreno da cultura, investem contra a força criadora da intelectualidade, da gerência dos destinos da cultura, para que ela não constitua obstáculo à sua penetração na estrutura econômica”.

Vejamos, então: se a obra arquitetônica deve ser concebida, ao mesmo tempo como representação humana, social e plástica e, além disso como já dissemos como intenção deliberada, ela certamente não existe por acaso, não é leiga, parte de uma intenção de produzir; sendo assim, a decoração (por definição matéria complementar do espaço arquitetônico) deve partir também de uma intenção deliberada.
Como? Nas palavras de Da Vinci está a forma de fazermos: “Quando tiveres desenhado muitas vezes uma coisa, poderás fazê-la sem medo”. Só dessa forma interrogamos a essência da obra.
O papel do arquiteto é o de substituir a sombra da árvore primeira escola, segundo Louis Kahn por um edifício que exprima a natureza da instituição criada.
“A Arquitetura”, diz o sociólogo Euclides Guimarães, “dá corpo ao incomensurável, na medida que revela a vontade de ser do objeto. Através da linguagem o silêncio ganha ressonância e o ato de habitar alcança sentido poético, ou seja, o traço passa a ser visto como o verso da Arquitetura e o desenho sua poesia, o veículo íntimo da inspiração, capaz de traduzir vontade de ser em vontade de fazer”.
É essa a história.

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