Revista Vão Livre No.0



EDITORIAL

Vão Livre nasce da ânsia em romper quase duas décadas de isolamento. Começou com uma proposta do colega Éolo Maia que vingou pelo apoio do Instituto de Arquitetos do Brasil – MG e do Informador das Construções. É um suplemento mensal que pretende comunicar reflexões, trabalhos e dúvidas não só aos diretamente ligados ao desenho do espaço para as comunidades, instituições ou pessoas, mas também dos que, a despeito da demanda atual, ainda se preocupam com o destino das sociedades e seus assentamentos.

A ausência tão prolongada requer novo treino em informar e dialogar – a experiência irá delinear um modelo editorial capaz de tornar Vão Livre mais do que um nome, mas uma possibilidade real de maior abertura.

Este primeiro número é na verdade um reencontro de gerações, colegas e amigos que, juntos, decidiram homenagear, em tema central, o professor e arquiteto que foi Sylvio de Vasconcellos.

Entretanto, é Ronaldo Masotti Gontijo quem propõe a retomada dos discursos, a partir da análise de possíveis rimas para arquitetura – fechadura, ditadura ou abertura – num convite à poesia há tanto sufocada, mas que se manifesta como alarma para o maior drama ecológico de Belo Horizonte, a destruição de sua memória natural. O ensaio tapume e a contribuição dos futuros arquitetos, inaugura assim, uma seção fixa para a arquitetura emergente.

Vão Livre se definirá a cada número, a partir da formação da equipe responsável pelo tema central, que estará sempre aberta a novas adesões, evitando-se tornar o suplemento porta-voz de panelinhas, se revezando na exibição de seus produtos. Para isso, é fundamental o maior número possível de participações e contribuições dos interessados em lançar novas idéias, divulgar trabalhos e retomar a discussão de assuntos já publicados.

A equipe editorial atual procura se reunir todas as terças, às vinte e trinta horas, na sede do Informador. Apareçam! Vão Livre propõe participação e é grande a responsabilidade do cidadão arquiteto na construção da comunidade consciente, capaz de decidir, por si e para si, o melhor para o país, a cidade, o bairro, a casa.

A equipe.


Arquitetura

Desenho de Sylvio de Podestá para texto de Ronaldo Masotti

Arquiteto: RONALDO MASOTTI GONTIJO
Ilustrações: Sylvio Emrich de Podestá

(O vocábulo em epígrafe não se limita à Arquitetura entendida em sua conceituação clássica, mas pretende ir além ao propor uma fusão, tão em moda, das palavras arquitetura e abertura. O texto que vem a seguir busca um enfoque panorâmico da Arquitetura num período de 15 anos, visto a partir do instante em que portas e janelas vão se abrindo, sem, entretanto, descer aos porões…).

Em tempo de abertura, quando por pequenas frestas podem ser vistos os estrebuches e ouvidos claramente os ecos remanescentes do arbítrio, seria injusto e altamente impatriótico atribuir ao sistema implantado desde 1964 um plano sistemático para cercear a liberdade de criação arquitetônica. Assim, devem ser entendidas como carentes de fundamento as notícias de bastidores que pretendem atribuir aos honrados chefes militares e sequazes civis a promoção de uma solerte campanha contra a Arquitetura e seus profissionais. Quando nada, a nobre arte das edificações, juntamente com o samba e o futebol, ainda tem serventia no que se refere à promoção de campanhas ufanistas e à melhoria da imagem externa do país, embora em tempos mais amenos a Arquitetura tenha se libado de forma bem mais profícua à citada imagem. Cidadãos mais indóceis poderão lançar mão das declarações do Sr. Ueki, há alguns anos, quando o sorridente e então Ministro virou seu poder de fogo para o lado dos arquitetos e, sempre a sorrir, despejou chumbo grosso. É sabido que o Sr. Ueki obteve grande destaque, tornando-se mesmo uma figura popular, justamente pelo fato de a realidade brasileira concernente ao petróleo não ter correspondido às suas patrióticas e carnavalescas declarações à imprensa – a tão decantada auto-suficiência redundou nos contratos de risco. O Brasil, infelizmente, não integra a OPEP. Se em matéria afeta a sua competência e ao seu Ministério o Sr. Ueki tem se destacado por suas declarações precipitadas e impensadas – tolos foram aqueles que procuraram enxergar grandes lampejos ou, pelo menos, uma crítica sensata ao desempenho dos arquitetos pátrios. Talvez, pelo fato de sorrir ao fazer pontaria, o Sr. Ueki se viu compelido a apertar os olhos, prejudicando a mira e errando o alvo.

Tanto é, que fica difícil recordar se as perorações ministeriais foram objeto de contestação ou polêmica por parte dos profissionais em alvo. Argumenta-se que caso as questões formuladas tivessem sido proferidas há algumas décadas, 20 ou 30 anos, o assunto renderia bastante, com toda a classe dos arquitetos replicando e treplicando. É de se supor, assim, que as formulações arquiteturais do Sr. Ministro, como as demais, não foram levadas a sério, talvez julgadas inoportunas, ou sem fundamento, ou anacrônicas. Na época, a revista VEJA, sob forte censura, mas com a verve habitual, abordou de forma exemplar a questão. De tudo isto, pode-se concluir que as declarações do Sr. Ueki devem ser entendidas como declarações do Sr. Ueki e representaram uma voz isolada dentro do Governo, não se podendo culpar o Sistema pela intempestividade do Ministro, mesmo porque a máquina do poder tem meios e departamentos mais eficazes quando é necessário acionar medidas corretivas.

Quanto ao Sr. Ueki, louve-se o seu permanente bom humor.

Por outro lado, é sabido que o produto acabado da Arquitetura não apresenta, seja para o usuário, seja para o transeunte que simplesmente o observa, a menor carga ideológica. Arte eminentemente plástica, não figurativa, a Arquitetura, obra acabada, reflete o estilo do autor, quando muito, seu engajamento ou alienação frente à realidade e ao tema proposto, mas não carrega elementos de leitura que permitam identificar se o profissional é adepto desta ou daquela corrente ideológica. Apesar do BNH ou, talvez, por causa dele, a Arquitetura continua, infelizmente, a serviço das classes dirigentes e abastadas, jamais conseguindo atingir a coletividade. A grande massa da população continua sem a possibilidade de conviver com arquitetura, pelo menos sofrível, na medida em que o seu padrão de referência habitacional é o CÔMODO, entidade mágica e instituição genuinamente brasileira.

O CÔMODO

Embora seja uma realidade palpável, o cômodo pode ser definido, mas jamais entendido em sua verdadeira grandeza. Uma explicação rudimentar pode ser tentada, afirmando-se que é composto de quatro paredes levantadas segundo enorme variedade de materiais: tijolos, tábuas (ou taubas, no linguajar pitoresco dos comodistas), chapas de ferro, papelão e tecidos, entre os principais. Para os tetos, as telhas são o material mais usado. Não existem dimensões básicas padronizadas, variam segundo as disponibilidades financeiras. Janelas e aberturas se enquadram na categoria de opcionais.

O espaço interno é único, delimitado pelas paredes e teto, recebendo o epíteto de cômodo propriamente dito e serve de guarida ao marido, à mulher, aos filhos e a um ou outro parente, próximo ou não. Neste espaço único as famílias desenvolvem as atividades básicas: cocção, alimentação, lazer e repouso. As necessidades fisiológicas são normalmente obradas em barrancos ribeirinhos próximos. A atividade sexual, mais comum entre marido e mulher, deve ocorrer segundo a prática tradicional, largamente consagrada pelo uso, mas foge ao escopo do presente trabalho esclarecer aonde, como e com qual freqüência.

Deste modo, estando a Arquitetura limitada a atender às classes favorecidas e tendo a grande maioria da população a sua unidade habitacional específica, o cômodo, é fácil constatar que restou apenas aos arquitetos acompanhar os gloriosos tempos do milagre econômico. A injustiça de se imputar ao Sistema qualquer plano objetivando reprimir a livre expressão criadora dos arquitetos, torna-se mais evidente quando se verifica que a atividade profissional da classe não conflita com a Lei de Segurança Nacional e nem atenta contra a moral e os bons costumes. No auge do milagre a Arquitetura se locupletou em franco contraste com as outras artes. Música, literatura, teatro, cinema e, por extensão, a imprensa como órgão veiculador de idéias, em todos os seus meios de divulgação, foram objeto de contumaz e insidiosa censura, executada com tal requinte e falta de critérios pêlos órgãos de repressão que, em determinadas circunstâncias, pode-se mesmo admitir um paralelo com práticas normais em regimes de há muito sepultos.

desenho de Sylvio de Podestá para o texto Arquitetura, de Ronaldo Masotti

A INCHAÇÃO DAS CIDADES

Ainda em tempos de milagre, o planejamento urbano foi solicitada à exaustão. O desenvolvimento a qualquer preço e o modelo concentrador agravaram a tendência, há muito constatada, relativa à inchação dos grandes centros urbanos. A falta de planejamento e critério por parte do poder público ao incentivar a concentração de grandes empreendimentos geradores de empregos junto aos centros já em vias de saturação, só fez acentuar o aumento das correntes migratórias da população rural, que por falta de condições de vida ao menos suportáveis em seus rincões de origem, agregam-se aos marginalizados da periferia das grandes cidades com o objetivo de simplesmente tentar sua integração na sociedade de consumo.

Por outro lado, um bom mercado de trabalho com a instalação dos grandes complexos industriais, comerciais, etc., e conseqüentemente projetos de novos bairros e grandes conjuntos de habitação coletiva incentivados pelo BNH. O Sistema facilitou, incentivou, financiou e em alguns casos arrependeu-se, presume-se, pois tantas foram as facilidades e tão farto o dinheiro público que os trambiqueiros, brasileiros ou não, não poderiam ficar à margem do processo.

O país cresceu, é inegável e o crescimento foi tão desordenado e os desatinos foram tantos a ponto de despertar já na nação ainda emergente uma consciência ecológica. A degradação da qualidade de vida das cidades, o desmatamento, a poluição das bacias hidrográficas, o aniquilamento da fauna e flora, são hoje denunciados pelo povo, entidades de classe, clero, profissionais liberais, autoridades isoladas. O despertar ecológico ajudou a população a reativar o processo de lutar com clamor democrático por seus direitos e o assunto, hoje, é freqüentemente objeto de estudos e debates em todos os setores da coletividade do país.

Curiosamente, esta posição manifesta-se com mais lucidez nas pequenas cidades do interior ameaçadas pela instalação de indústrias poluentes e onde processos tradicionalmente poluidores são acionados acima dos limites toleráveis.

OS DIAS NEGROS

Em todo este processo de expansão urbana e crescimento industrial o arquiteto sempre esteve presente, projetou modernos e funcionais conjuntos residenciais e complexos industriais primorosos. Individualmente, movimentou-se conforme o esquema traçado pelo Sistema, embora sem uma coonestação aberta ao poder econômico. Atuação pálida, uma vez que a formação do arquiteto lhe confere condições morais, técnicas e humanas para atuar mais decisivamente no sentido de se promover maior justiça social. Nos grandes centros, por exemplo, há que se ater ao fato de que, para cada cidadão que se instale razoavelmente com sua família em habitação servida por todo o equipamento urbano mínimo e indispensável, cerca de 3 a 4 famílias estarão habitando cômodos na periferia das cidades, destituídos das menores condições de conforto, higiene, segurança, etc. e com os respectivos chefes em situação de subemprego. O aumento da criminalidade, os assaltos, a violência, são conseqüências imediatas e acarretam nas classes média e alta a paranóia da segurança: vigilância particular armada, muros altos enclausurando as habitações, sistemas de  proteção eletrônicos, entre outros.

Ora, se a classe dos arquitetos participou ativamente do milagre é de se supor que tudo vai bem, no melhor dos mundos. Não se pode nem mesmo alegar-se vítima das insidiosas patrulhas ideológicas. Entretanto o modelo também se implantou segundo uma ótica maniqueísta – bastando lembrar o famoso “Ame-o ou deixe-o”. Vale a pena repensar o período de trevas absolutas, implantado com o Al-5 em dezembro de 1968. Tome-se como referência a música popular brasileira e alguns de seus mais criativos compositores : Chico, Vandré, Caetano e Gil. Não cabe aqui qualquer análise sobre o valor artístico de cada um, nem um enfoque de suas posições. Importa antes a atividade criativa e reformuladora que eles então desenvolviam, empolgando as mais variadas correntes de opinião do país. Não deu outra: nossos prezados compositores foram forçados a procurar plagas mais amenas ou, em linguajar corriqueiro, cantar noutra freguesia.

A respeito, bolsões de contestação ao regime militar, sinceros, mas radicais, chegaram a afirmar que desde os tempos frenéticos dos festivais de música popular, os órgãos de segurança do Sistema passaram a considerar os compositores como elementos “nocivos ao bem estar comum”. A explicação dos bolsões em apreço alega a favor o episódio que envolveu o controvertido compositor Sérgio Ricardo: inconformado com os apupos do público presente, num gesto tresloucado atirou seu violão sobre a platéia. O inofensivo e romântico instrumento passou então a ser visto pelo Sistema como arma de alta periculosidade e os cantores e compositores como elementos nocivos à segurança nacional. Tentam explicar assim os exílios forçados, uns mais breves, outros mais longos e sofridos, de nossos mais insignes compositores e trovadores.

Relativamente à Arquitetura é de bom alvitre lembrar a fúria repressora com que o Sistema atacou o renomado patrício Oscar Niemeyer.

Mas o prezado Oscar já era então cidadão do mundo, dotado de força moral suficiente para enfrentar a paranóia coletiva e injúrias contra si assacadas. Enquanto o regime, anacrônico desde o nascimento, apodrece e já exala odores fétidos, Niemeyer vai dando lições de vida e de democracia, lépido na juventude de seus 72 anos, trabalhando com o empenho de sempre.

OS BANIDOS E OS BIÔNICOS

Ainda naquilo que toca íntimo nos mineiros, emerge a figura do nunca suficientemente pranteado professor Sylvio de Vasconcellos, eminente mestre da mineiridade e da Arquitetura Brasileira. Escapa aos domínios da lógica o por quê de tanta perseguição e humilhação, a ponto de forçar-se um simples professor a amargo exílio voluntário, logo quem tão bem entendia e curtia as coisas de Minas.

O arbítrio atacou com fúria incontida em todas as frentes, não se limitando apenas aos cidadãos ligados às artes. Baniu-se, exilou-se, cassou-se e fez-se cair em degradação profissionais liberais, pensadores, educadores, literatos, operários, teatrólogos, cientistas e outros. A auto-suficiência e empáfia dos chefes militares e acólitos civis do regime levaram a população à expectativa de que dos laboratórios do poder emergissem criaturas superdotadas para substituir os cidadãos caídos em desgraça. A nação, ansiosa, continua aguardando, já que a alquimia do Sistema se contentou em forjar senadores biônicos. A coletividade não atinou com as vantagens das forjas palacianas e o sistema de feitura dos biônicos não conseguiu suplantar o velho e eficiente processo da consulta popular.

O AMASSAMENTO

Atuando no atacado com o Al-5, o Sistema não esqueceu o varejo e se fez presente nas universidades com o 477, instrumentos com tal poder repressivo que a lembrança do gênio diabólico do Dr. Sylvana não é gratuita quando se questiona a paternidade dos referidos em apreço. É tônica dos governos ditatoriais obstar debates e livre circulação de idéias assim, o meio universitário veio a pagar alto preço por ser constituído maciçamente de população jovem e dinâmica, sempre ávida de participação efetiva na vida nacional. O aparato repressivo ocupou as faculdades, às vezes até militarmente, incentivou os olheiros e o dedurismo com o objetivo de limitar ao máximo a atuação da classe estudantil frente à realidade da nação. São freqüentes as citações de reitores prepotentes e inábeis no trato com os jovens, e o corpo docente via de regra se manteve assustado e impotente frente ao estado de coisas. Sob a ameaça do 477, o estudante se manteve amedrontado e os diretórios acadêmicos encurralados, sem chances de organizarem congressos, seminários, enfim, qualquer atividade paralela à vida acadêmica. O Sistema jamais tolerou qualquer reunião de estudante fora do recinto das salas de aula. Não é demais afirmar que a vida universitária e a qualidade do ensino se degradaram, pois é difícil conciliar instrução de boa qualidade com regime que não admite discussões e ameaça intervir ante simples rumores de veiculação de idéias. O jovem hoje tem suas razões se porventura se mostra apático, desinteressado ou até alienado. Apesar de tudo e apesar também da Educação Moral e Cívica, a mocidade não decepcionará e continua a ser a grande esperança da nação. Se a vida estudantil se tornou amorfa, o dia a dia da coletividade foi sendo cercado por contornos insustentáveis. Os profissionais liberais, através dos órgãos de classe, constataram a impossibilidade da promoção de reuniões de caráter amplo, congressos e similares, onde se pudesse debater com liberdade as condições de atuação no contexto da realidade brasileira.

A fisionomia inflexível e repressiva acentuou-se passo a passo com uma censura quase medieval, imposta a ferre e fogo aos órgãos de informação. É o momento em que as falas ministeriais, quase sempre divorciadas da realidade, dão as diretrizes milagrosas e o Governo se locupleta de si mesmo, pavoneia-se, e inicia processo de autopromoção sem par nos anais pátrios. A nação extasiada e anestesiada a tudo assiste e a platéia, por vezes, aplaude e pede bis. Enquanto o povo cola aos ouvidos radinhos de pilha, as classes mais abastadas colam nos pára-brisas dísticos ufanistas, adereços e alegorias compatíveis com a ocasião. A época dos milagres, segundo os mais céticos, já passou e remonta aos tempos de Cristo.

Outros, não tão céticos, chegaram a acreditar no milagre. Referem-se, é claro, ao “Milagre dos Peixes”, do sempre louvado Milton Nascimento, que também ficou pelo meio, uma vez que a censura vetou a quase totalidade, das letras apresentadas.

O modelo econômico cumpriu à risca as metas traçadas, isto é, piorou a já precária e injusta distribuição de renda e permitiu um significativo avanço das empresas multinacionais. A Transamazônica, segundo projeto original, ainda faz a ligação de lugar nenhum a nenhum lugar. A Ferrovia do Aço, como toda obra executada sem planejamento, mal começada já está sujeita a grandes reformas e reformulações. Os estouros do mercado financeiro, segundo consta, nada mais são que ecos finais do troar dos canhões que deveriam ter sido acionados em março/abril de 1964. E quanto à inflação, nada a declarar.

Permanecem inexplicáveis apenas as razões que levaram as autoridades a preterir o arrojado projeto dos grandes lagos. Fica assim esclarecido que a inundação de grande parte da Transamazônica não deve ser atribuída ao projeto de Mr. Herman Kahn. Justiça se faça e inocente-se o robusto senhor, muito pouco chegado a um ciclamato e entenda-se que a inundação virá por conta da barragem de Tucuruí.

Em meio a tudo isto devem ser entendidas como absolutamente normais a participação de grupos econômicos do gabarito dos Lutfala, Atala, LUME e quejandos. São conseqüências do modelo, na medida em que se fizeram presentes e cresceram sob as bênçãos dos incentivos, do credito e do engodo oficial.

ARQUITETURA E LIBERDADE

 Os arquitetos, parte integrante da nação, viveram e participaram, juntamente com as outras classes profissionais, de todo o processo dito revolucionário. A partir do momento em que um regime se fecha e sobrepõe à Constituição a ideologia da Segurança Nacional amparada por instrumentos de exceção, a Arquitetura é automaticamente ferida – sua característica eminentemente criativa se ressente e se limita na medida em que o livre curso das idéias esbarra em canais de informação obstruídos. Embora jamais tenha ‘interferido diretamente junto aos arquitetos com o intuito de cerceá-los, não é demais afirmar que indiretamente a prepotência reinante muito contribuiu para a alienação e queda de nível da produção arquitetônica.

Sofrendo feroz repressão desde os bancos das faculdades, sem receber por parte da Imprensa censurada carga de informações ao menos razoável, impedido de promover debates amplos e consistentes, sem estímulo para pesquisa e o conseqüente confronto das idéias, o profissional, mal saído da universidade, encontra pela frente uma sociedade altamente competitiva e elitista, selvagem mesmo, excessivamente consumista, casuística e imediatista. O país se encontra tolhido, fechado ao diálogo e à apreciação de idéias.

É importante e curioso ressaltar que até a década de 60 eram regularmente editadas no país inúmeras revistas especializadas em arquitetura, dentro de bons padrões gráficos:

ARQUITETURA E ENGENHARIA, MINEIRA, HABITAT, ACRÓPOLE, MÓDULO, BRASIL, ARQUITETURA CONTEMPORÂNEA, entre as principais.

Destas, sobrou apenas MÓDULO, de Oscar Niemeyer, com a periodicidade violentamente interrompida por vários anos: a revista, como seu responsável, não recebeu as boas graças do aparelho repressivo e foi declarada subversiva por veicular ideologias espúrias. Além de MÓDULO, circula também CASA E JARDIM-ARQUITETURA, que até o momento ainda não conseguiu fixar uma diretriz editorial. As publicações especializadas, de uma certa forma, jamais constituíram empreendimentos rendosos para seus editores e sempre sobreviveram, principalmente, graças ao idealismo de seus responsáveis, permitindo que os conceitos e os trabalhos dos arquitetos fossem debatidos e analisados, de maneira salutar, por todo o país.

A partir do instante em que os custos foram se tornando proibitivos e a veiculação de idéias considerada nociva aos interesses do Sistema, verifica-se ser muito difícil a manutenção ou tentativa de ressurgimento destas publicações.

A Arquitetura, como produto final, não contesta os regimes e não traduz qualquer conotação ideológica. Seu exercício, contudo, jamais poderá se desvincular da realidade política e social da nação. Arquitetura e ditadura rimam, quando muito, mas não combinam. O sempre citado episódio da Bauhaus é muito significativo.

O CONSUMISMO E OS PACOTES

Se, de um lado/os veículos tradicionais de informação arquitetônica foram caminhando para a extinção, de outro lado, observa-se o aparecimento de variadas publicações especializadas em decoração. São revistas da melhor qualidade gráfica, altamente sofisticadas e dirigidas ao público certo, cuidando de promover um visual imediatista da sociedade de consumo. Estas publicações não se destacam pelo brilhantismo dos textos incorporados mas, ao contrário, ordenam  palavras de modo a glorificar o lugar comum de soluções tradicionais e, por vezes, alienígenas.  O conteúdo pode ser comparado às mensagens e padrões não muito realistas lançados  diariamente no vídeo, constantes nas novelas  das 6,7,8 e demais horas. Quanto às novelas e às revistas de decoração, tudo bem. Têm pleno direito à existência e devem falar daquilo que lhes compete e que encerra a essência de suas propostas. O público é certo, emergiu do milagre e está plenamente integrado às mensagens de consumo. O que se lamenta apenas é que uma grande parte da população do país permaneça à margem do processo e sem condições materiais e de instrução para conviver, ao menos, com a leitura diária de jornais. Lamenta-se também que uma pequena, porém considerável parte da coletividade, se marginalize na medida em que sua atuação profissional se processa em circuito fechado, desprovido dos meios convencionais de informação e debates.

A arquitetura sempre foi produto do meio e retrato fiel de sua época. Não se estranha assim que sua qualidade e serventia careçam de conquistas significativas durante os derradeiros 15 anos. Participando ativamente de um modelo desumano e elitista, a Arquitetura foi usada e abusada pêlos detentores do poder político e econômico. Em meio às trevas, esteve mancomunada com a especulação imobiliária e a devastação do meio ambiente. O ritmo de Brasil grande forçou os arquitetos a abrirem mão de um processo de prestação de serviços que, romântico e idealista, procurava respeitar a condição humana. Para servir ao modelo, os escritórios se ampliaram e adquiriram status empresariais, sob a ordem geral do imediatismo e do faturamento ou, no dizer de alguns, levantar uma grana. Hoje, em tempos mais amenos e abertos, já se questiona as vantagens e desvantagens desta conotação empresarial da Arquitetura. Se a atividade empresarial da Arquitetura é ou não conveniente, trata-se de assunto por demais polêmico e que escapa às intenções do momento. Em tese, a boa qualidade da Arquitetura independe de ela ser executada por autônomos ou por sociedades empresariais. Certo é que o arquiteto foi forçado a administrar pacotes de serviço ao absorver responsabilidade sobre os projetos complementares, o que se entende e aplaude.

Não se concebe é o fato de o arquiteto ser forçado a compor equipes de trabalho com profissionais estranhos à sua confiança, normalmente impostos pelo grande cliente, estatal ou privado. De pacote em pacote, sempre mal embrulhados, a Arquitetura se envolveu no milagre: muito subserviente, permitiu-se até mesmo ser uma das poucas atividades empresariais em que os honorários relativos ao trabalho profissional fossem fixados e aviltados pêlos clientes.

O arquiteto, como simples instrumento desenvolvimentista, limitou-se a executar tarefas sem chance de abrir os problemas ao debate amplo dos setores da sociedade diretamente envolvidos. Uma panorâmica da Arquitetura dos últimos tempos não apresenta um saldo muito positivo e aos arquitetos, como classe, o futuro certamente cobrará as omissões, os posicionamentos dúbios e a falta de firmeza no confronto com os grandes problemas nacionais que lhes são afetos. A respeito, a discussão de agora está generalizada no próprio âmbito ministerial: distribuição de renda, direito de greve, desrespeito aos direitos humanos, anistia e outros. Os tempos realmente mudaram, a ponto de um dos pais do milagre, o Dr. Delfim e não o Dr. Sylvana, fazer publicamente profissão de fé democrática e se declarar socialista fabiano.

Desenho Sylvio de Podestá

ACOMODAMENTO E DISTORÇÕES, EM MINAS

Em Belo Horizonte, a conjuntura se reveste de aspectos particulares. Capital de um estado conservador e tradicionalista, berço da revolução de 64, a cidade apresentou um crescimento cada vez mais desordenado, recebendo contingentes humanos das mais diversas regiões. De um lado, empresários e aventureiros que vieram se aproveitar do milagre e de outro, levas de populações marginalizadas, das quais o milagre soube tirar proveito. Como os objetivos da revolução bem cedo, dizem, se desvirtuaram, o clima tornou-se propício à manutenção de privilégios, ao enriquecimento rápido e à alienação cultural.

As forças da reação e da repressão, por sua essência, cultivam tradições arraigadas, entronizam o passado e se manifestam através de conceitos anacrônicos. As classes dirigentes, enquistadas ao poder, jamais poderiam negar suas tradições ao recorrer aos arquitetos. O medo de contestar e a necessidade de preservar situações e privilégios forçam um retorno às origens coloniais. Ora, uma Arquitetura dita contemporânea se impõe numa sociedade aberta a partir do momento em que se liberta de parâmetros convencionais, contesta valores estabelecidos sobre critérios duvidosos e passa a formular e reformular o conceito de espaço sob o apoio do desenvolvimento tecnológico, enfrentando a realidade social e política. É muito difícil uma Arquitetura bem fundamentada socialmente conviver com regimes de exceção e sobreviver, pois o campo de ação do profissional está sujeito a pressões incontroláveis. Em Belo Horizonte, seria cômico, não fosse trágico, a obstinação com que os habitantes se agarram aos elementos e formas arquitetônicas do passado. A falta de originalidade e o processo gratuito de compor elementos tradicionais indicam, antes de tudo, um total desrespeito à nossa herança colonial e uma ignorância ímpar do que seja preservar e cultivar os ensinamentos do passado. No fundo, um torpor, algo como um receio coletivo, quase paranóia, certeza infundada de que somente certos materiais e determinadas formas possuem fluidos milagrosos para conferir status e proporcionar boas condições de habitabilidade. O povo, desinformado e extasiado, mais uma vez aplaude e pede bis, o fenômeno se desenvolve pela periferia da cidade, atinge até os espigões.

A especulação imobiliária nunca foi de levantar tarde, dizem mesmo que dorme com um olho aberto sem fechar o outro e investe maciçamente na nova moda. É significativo observar que a questão é de moda, um reflexo da conjuntura, embora se procure dourar a pílula com a patina da tradição. Os mais tradicionalistas, berrando sobre as vantagens de uma estética anacrônica, são usualmente os primeiros a se associarem aos empreendimentos imobiliários predatórios que sistematicamente cuidam de demolir os poucos exemplos significativos da Arquitetura dos primórdios da implantação da Capital. A ótica predatória ainda tripudia: demole-se um prédio velho, em más condições de conservação, em seu lugar edifica-se outro acomodando dezenas de famílias, de aspecto mais velho ainda e a cidade só tem a lucrar com tal proceder. Para cada demolição, um espigão, seja colonioso, modernoso ou mediterrâneo. No fundo, um simples jogo de falsas premissas, onde o importante é levantar uma grana e levar vantagem em tudo, certo?

As forças da reação não são ingênuas e sabem tirar proveito de tudo. Vale lembrar a atuação daquela sociedade muito chegada a um papo firme com a Virgem, integrada por impávidos e aparentemente conspícuos cidadãos de terno, gravata e cabelos à escovinha, perdão, à buscarré, por qualquer pretexto organizando cruzadas cívicas, portando, altaneiros, belos estandartes e bradando aos céus os perigos das artes do capeta e das ideologias vermelhas. É por demais sabido que grupos econômicos e empresas incorporadoras atiçavam o alarido dos cruzados ao mesmo tempo que cuidavam de promover a reação estética, disseminando edifícios coloniais pelas metrópoles do país.

No fundo, cuidavam de levantar uma grana e os garbosos rapazes, em diversas oportunidades, valeram-se dos materiais primeiros da Arquitetura, o pau e a pedra, para enfrentar os dísticos jocosos que a população sempre lhe dirigiu. O brasileiro, muito malicioso, nunca pôde entender como séria e digna de crédito) uma sociedade em que mulher não toma parte. Aliás, no que se refere às artes do demônio, o povo sempre preferiu as amenidades cinematográficas dos americanos, com seus exorcistas e profecias. Quando nada, são muito mais engraçados.

BELO HORIZONTE É UM ESPANTO

Belo Horizonte se notabilizará na história por seu aspecto pitoresco. Sendo uma metrópole nova, sua Arquitetura tem mais idade do que a própria cidade. Pode-se mesmo imaginar o pasmo de futuros e remotos pesquisadores, bem depois do holocausto, ao baixar por estas plagas: causar-lhes-á espécie o confronto da data de fundação do município, descoberta em roto e ancião pergaminho, com os exemplares arquitetônicos que emergirem das ruínas. Aos ilustres pesquisadores restará o eterno dilema sobre quem nasceu primeir : o ovo ou a galinha? Aliás, a Capital apresenta mesmo aspecto de coisa velha e mal cuidada, sem o encanto místico e bucólico das cidades históricas. Se o visual não é de primeira ordem, não muito consistente é a arenga daqueles que procuram teorizar sobre as vantagens do colonial. Entenda-se que devem ser tolerados aqueles que gostam da coisa por gostar e deve-se respeitar o direito daqueles que procuram simplesmente faturar. Quanto a agüentar as sandices dos teóricos tradicionalistas, realmente é dose. A empáfia com que os ditos se armam para teorizar chega ao requinte, de negar conceitos de física amplamente conhecidos e formulados em laboratórios experimentais, passíveis de serem medidos e dimensionados por grandezas definidas e conhecidas. As inverdades assacadas com o pretexto de garantir um respaldo histórico, técnico e teórico do processo saudosista são de tal ordem capciosos que chegam mesmo a iludir grande parte da população. Vez por outra os porta-vozes do processo emitem conceitos que se equiparam em conteúdo aos pronunciamentos do Sr. Ueki.

Alguma razão teve o compositor e poeta Francisco de Holanda quando disse: “Esta terra ainda vai cumprir seu ideal, Ainda vai tornar-se um império colonial”. O receio generalizado é de que se inverta o processo de emancipação do país e, em longo prazo, a nação se entrelace novamente com Portugal e se veja reduzida à condição de colônia. É o mesmo poeta que diz em continuação: “Esta terra ainda vai cumprir seu ideal, Ainda vai tornar-se um imenso Portugal”.

Em tempo de abertura é de se esperar que a Arquitetura reencontre seus caminhos. Havendo mais seriedade no enfoque dos problemas nacionais, estabelecida a plena liberdade e o estado de direito, pode-se supor que o Brasil voltará a ser Brasil e se realize como nação. Espera-se dos arquitetos uma maior consciência de classe participante. Pelo menos, que fiquem de olho na metade restante da Serra do Curral.

Arquitetura, bela palavra. Se confrontada com abertura permite preciosa rima e é um convite à poesia. Contudo, é preciso estar atento à licenciosidade poética da prepotência, que se vale de fechadura, ditadura e censura como rimas do mesmo grupo.


SERRA DO CURRAL

Francisco Marcos Castilhos dos Santos

Os altos interesses nacionais,
tarados e anormais,
demoníacos – maníacos – sexuais,
vestidos de tratares e dragas,
tiraram a sua roupa,
despiram-na sem nenhum pudor
ao vento frio da noite
e aos olhos da cidade,
incubaram-se, nas suas profundezas
de onde jorrou o vermelho-terra,
misto de sangue e pó,
vasculharam a sua intimidade
com desrespeito predador,
ralaram o seu casco,
evacuaram os seus casos
mitos e mistérios morro abaixo,
rasgaram os seus sulcos,
ao meio retalharam os seus veios,
e não cerziram os rasgos
nem remendaram os estragos,
escalavraram a sua pele,
e a princípio tiraram do seu nome
a letra final ele.
Depois submeteram-na a abalos
semi-sísmicos,
minaram-lhe as estruturas,
vendaram-lhe os olhos a fumaça
para que nada presenciasse,
dinamitaram suas entranhas
para que não amasse,
foram lhe furtando os pedaços,
reduziram seu tamanho e forma
em graúdos estilhaços,
arrastaram-na pouco a pouco
sem muito estardalhaço
a estranhos compartimentos,
a científicos departamentos,
onde lhe analisaram,
onde lhe alisaram,
violentaram-na a força bruta,
e da sua fecundidade
lindos filhos geraram,
a quem chamaram “divisas”
Por fim, não satisfeitos,
abandonaram-na rota e suja,
e não lavaram o que lhe restou
após borrarem o a, o ar, o arr
do seu nome.


SYLVIO DE VASCONCELLOS, RETRATO EM BRANCO E PRETO

Arquiteta SUZY DE MELLO

Silvio de Vasconcellos

Não posso recusar a Éolo Maia a colaboração que me solicita, entusiasmado, para “Vão Livre”. Gostei do nome da revista como gosto da turma que a organiza – antigos ex-alunos, hoje bons colegas, sempre amigos.

Mas gostei muito mais ainda da idéia de homenagear o mestre de todos nós, formados na Escola de Arquitetura da UFMG, que foi Sylvio de Vasconcellos, em seu primeiro número. Só haveria uma coisa melhor: abrir a homenagem com um artigo do próprio homenageado que, sem a menor dúvida, o enviaria de Washington dando-nos mais uma lição de arquitetura e de generosidade.

Infelizmente não houve tempo para isso, mas a sinceridade da lembrança é muito válida, a ocasião oportuna e nada mais justo que reunir depoimentos de alguns dos muitos amigos de Sylvio, que , comovidos, por ele rezaram há cerca de dois meses na igreja de São José, no sétimo dia de seu falecimento.

Prefiro, porém, fazer um retrato – mais que um depoimento – sobre o professor e o amigo que,  lamentavelmente, as turmas mais novas da Escola não conheceram. Além de ser o autor de tantos e tão importantes trabalhos, Sylvio era uma personalidade dinâmica, de cultura profunda, de múltiplos interesses.

Nunca tive oportunidade de lhe dizer, mas o comparava a um renascentista tal a sua capacidade de pesquisar, observar, criar. Era uma figura do “Quatrocento”, surpreendentemente surgida nas Minas. Conversava e polemizava muito, exigia debates e a partir de discussões que levantava articulava novas teorias que desenvolvia em escritos nos jornais.

Fui sua aluna em 1955, de “Arquitetura no Brasil”, quando já trabalhava no escritório de Eduardo Guimarães Jr., outro grande professor que perdemos muito cedo. Formada em 56, fui para a Europa e só em 59 voltei à Escola, já então como pesquisadora. Sylvio fora um professor que se destacara por suas aulas sempre interessantes e objetivas, mas com quem pouco conversara nos tempos de estudante por estar muito envolvida no escritório de Eduardo que, como o próprio Sylvio, tinha sido dos primeiros arquitetos a conquistarem a cátedra na Escola. À eles se juntaria depois Raphael Hardy Filho, em lideranças que se refletiriam profundamente em nossa formação e que, para mim, se transformariam em enriquecedoras amizades. O reencontro com Sylvio foi casual e, a partir de uma conversa sobre Mary Vieira, amiga comum que de Minas partira para a Suíça e se tornara um dos grandes nomes da escultura moderna na Europa, passamos a falar de pesquisa em arquitetura. Sylvio ouviu minhas idéias, ampliou-as com seus conhecimentos e deu-me o apoio de sua experiência. A partir daí, surdiu a Seção de Pesquisas da Escola, supervisionada por ele e dirigida por mim. O grupo de arquitetos-pesquisadores foi ampliado e nossa presença marcou o início dos anos 60 através do trabalho conjunto com a Gráfica e o Serviço de Foto-Documentaçao da Escola. Em um ano, editamos mais de vinte livros e fizemos não sei quantas exposições. Sem falar em conferências, boletins bibliográficos e outras atividades de extensão, comuns hoje, mas inéditas naqueles tempos. Trabalhava-se com imenso entusiasmo que também contagiou os alunos, tornando-os colaboradores de muitas publicações. Sylvio escrevia muito – é desta época o belíssimo “Nossa Senhora do Ó”, entre outras obras – mas incentivava a todos a escreverem também, e com sua ampla visão, procurava estimular a formação de novos professores. Foi assim que fiz meu concurso para livre-docente, em 62, com o próprio Sylvio fazendo parte da banca examinadora sem tomar conhecimento dos que falsamente o acusavam de proteção para comigo. Foi um examinador justo nas notas que me atribuiu e brilhante nas questões que me propôs, encerrando os boatos já que as sessões eram públicas e o concurso incluía a participação de mais quatro catedráticos, três dos quais de outros estados. Pouco depois, Sylvio foi nomeado diretor da Escola, porém, envolvido por intrigas em março de 64, foi afastado do cargo.

Esteve no Chile, lecionando Teoria da Arquitetura na Universidade de Santiago e trabalhando na DESAL, órgão das Nações Unidas.

1. Edifício do Xodó / Funcionários
2. DCE da UFMG / Lourdes
3. ICBEU / Lourdes

Retornando ao Brasil, voltou à cátedra e continuou como chefe da diretoria regional do IPHAN, que ocupava desde 1940, quando foi criada, por indicação de Rodrigo Mello Franco de Andrade. Em 69, aposentado por ato institucional, tornou-se o primeiro coordenador cultural do Instituto Cultural Brasil- Estados Unidos, entidade com a qual já colaborava anteriormente. Suas viagens internacionais incluíram um estágio em Portugal, como bolsista da Fundação Gulbenkian e uma viagem aos Estados Unidos a convite do governo americano. Viajou, também, para a França e residiu em Paris, trabalhando no escritório de arquitetura Bernard Granei. Recebeu uma bolsa da Fundação Guggenheim, em Nova York, e contratado pela OEA como especialista em restauração foi indicado para diversas missões nas Américas do Sul e Central e, principalmente, no México, onde permaneceu por algum tempo. Fixou-se, finalmente, em Washington onde fazia consultorias para a OEA, escrevia para jornais e revistas e se transformou em excelente desenhista que – em branco e preto – retratava a paisagem da capital americana e os bucólicos campos da Virgínia. Nos últimos tempos, trabalhava com sua mulher, Muriel, em ampla pesquisa sobre textos do século XVIII referentes à Minas Gerais, tendo recebido uma bolsa de 30 mil dólares, prêmio excepcional do “Fundo Nacional para o Desenvolvimento das Artes”, do governo americano, concedido apenas a intelectuais de reconhecida capacidade.

Estes dados resumidos visam apenas situar Sylvio em sua vocação cultural que não obstante tantas perseguições injustas, continuou fiel às suas origens e tendência: Minas sempre fez parte dele e de seu trabalho, dando à sua personalidade as características singulares que o tornaram um arquiteto de renome, um  respeitado restaurador, o mais importante estudioso da arquitetura colonial mineira e um escritor e jornalista de agudas observações envolvidas por um estilo leve, freqüentemente romântico porém crivado de ironia e humor.

Nossa convivência na Escola transformou-se em amizade de famílias, abrangendo festas de aniversário, ajantarados domingueiros e até os natais, quando Sylvio aparecia nas nossas ceias e, com um discreto uísque na mão, fumava cigarros de palha com meu pai ou conversava com meu sobrinho Paulo Augusto, depois seu grande amigo e correspondente. A par desta leal amizade, crescia também o intercâmbio de idéias. Trazendo-me seus escritos para revisão, dava-me coragem para escrever também.

Forçava-me à discussão de teorias de arquitetura no geral, e da arquitetura brasileira em particular. Acabei perdendo a timidez de ex-aluna e discutíamos sobre todos os aspectos da arquitetura. Daí a colaborar com ele em trabalhos diversos como no levantamento e pesquisas da Capela de Nossa Senhora do Ó, em inúmeras conferências e artigos e, finalmente, no seu trabalho mais importante, embora pouco divulgado, “Mineiridade”.

Casa BM / Serra

Escrito no exterior – em Lisboa e Paris – recebia aqui cópias xerox dos originais pelo correio. Fazia a revisão, rabiscava comentários nas margens, checava citações e devolvia tudo, via aérea, à Sylvio. As cartas eram quase semanais e as tenho guardadas, cheias de observações vivas e incluindo seus primeiros desenhos feitos em esferográfica. No meio disso tudo, Sylvio tinha planos de trocar nossas matérias na Escola (antes de ser aposentado) e deu-me quase um novo e mais completo curso de arquitetura brasileira, inclusive as fichas que fez para seu exame de cátedra.

Estas lembranças mais pessoais são evocadas agora para justificar muitas das opiniões que julgo poder dar sobre a personalidade de Sylvio como sobre suas obras já que vinte anos de amizade, de convivência e de correspondência dão um lastro de conhecimento e compreensão amplo e profundo, mesmo que – em diversos momentos – tenha discordado dele, a mais séria destas divergências tendo ocorrido em 76, quando estive em Washington, mas que foi superada posteriormente e que agora nem sequer conta.

Foi nas nossas muitas conversas que fiquei sabendo, por comentário do próprio Sylvio, de outras atividades suas na vida cultural de Belo Horizonte: suas metas como primeiro diretor do Museu de Arte da Pampulha, sua atuação em júris de arte e arquitetura (inclusive na Bienal de São Paulo), sua participação em bancas examinadoras de diversas universidades brasileiras, os convites para conferências e os temas que escolhia, os critérios determinantes de seus projetos e sua obsessão em conhecer, estudar e pesquisar a arquitetura colonial de Minas. Lembro-me de sua ida para Brasília, como coordenador do Curso de Arquitetura na época do Reitor Caio Benjamim Dias, quando discutimos extensamente os problemas da formação de arquitetos.

Recordo-me, igualmente, de suas estórias de restaurador e pesquisador, andando pelo interior de Minas a verificar os monumentos que levantaria, reformaria e estudaria para o IPHAN. E me lembro bem de sua atuação no Automóvel Clube, como diretor e presidente, além de freqüentador assíduo do famoso 4°andar, onde se discutia de tudo enquanto se jogava um carteado qualquer ou o bridge britânico, como o adjetivo que classificava o clube. De tudo participava Sylvio, em rodas variadas de amigos que ele cultivava com inteligência e sensibilidade; ainda se orgulhava de ser exímio dançarino e grande seresteiro, com violão afinado para as mais tradicionais músicas mineiras.

Seus projetos espalham-se em Belo Horizonte, muitos infelizmente desfigurados por reformas inadequadas. Em todos, porém, a marca de sua personalidade de arquiteto é evidente. Lembro-me bem quando dizia que os loteamentos usuais amesquinhavam as casas, apertadas em terrenos de dimensões mínimas.

Mas, nestes mesmos terrenos, lançava residências que sempre tinham uma parte que atravessava o lote transversalmente, vencendo a exigüidade das testadas. Era seu partido preferido, que agenciava um jardim interno, privativo da família. As soluções variam, naturalmente, mas há que notar a persistência de seu partido básico e extremamente funcional.

Dentro deste esquema foram projetadas as residências do próprio Sylvio (Cidade Jardim), de Rodrigo Otávio Coutinho (Lourdes), e Délcio Martins ( Sto Agostinho) bem como várias casas de jornalistas (no Sto. Agostinho) e outras na Serra. Em esquemas semelhantes, porém menos contidos, estão as residências de Caio Benjamim Dias, Gabriel Andrade e Gilberto Faria, na Cidade Jardim, cujos terrenos mais amplos ensejaram composições de maior liberdade ainda que referenciadas às características de Sylvio. Plasticamente, Sylvio resolvia seus projetos em blocos bem definidos que se justapunham em saudável equilíbrio, usava cores discretas mas seguramente e gostava de inventar formas novas para os elementos estruturais, como se pode notar nas residências Caio B. Dias e Gabriel Andrade, principalmente.

Os vãos se distribuíam em proporções elegantes e muito semelhantes às dos sobrados coloniais que lhe eram tão familiares e queridos. Além de inúmeras outras residências, Sylvio projetou a Capela do Colégio Izabela Hendrix, as sedes do DCE (rua Gonçalves Dias) e do Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos e o edifício de apartamentos da Praça da Liberdade, popularmente conhecido como “Xodó” (pelo nome da lanchonete no térreo) e onde ele foi meu vizinho por algum tempo.

Também é de sua autoria o monumento ao Aleijadinho, na frente da Reitoria da UFMG, no campus da Pampulha. É uma interessantíssima concepção plástica de grande movimento que lembra bem as curvas barrocas do grande mestre mineiro do século XVIII.

Seus trabalhos escritos multiplicam-se na constante colaboração com os principais jornais brasileiros, não só o “Estado de Minas” como “O Estado de São Paulo” e o “Jornal do Brasil”, além de ter sido comentarista esportivo de um jornal paulista, certamente por seu grande amor ao Atlético. Alguns de seus escritos (os mais antigos) foram reunidos no livro “Noções de Arquitetura”, publicado pela EAUFMG no início de 1960. Mas há muitas e muitas crônicas publicadas posteriormente e que agora estão sendo organizadas para publicação. De sua época na Escola de Arquitetura, são seus principais trabalhos :

 “Arquitetura Particular em Vila Rica”, tese de concurso reeditada em São Paulo, e que é magnífico estudo sobre a evolução das casas mineiras. E há o já citado “Nossa Senhora do Ó”, completo levantamento iconográfico e histórico da mais ramosa capela mineira, em Sabará. Também importantes trabalhos são “Pintura Mineira e outros Temas”, cujos ensaios se destacam pela originalidade das observações e abordagens e “Arquitetura no Brasil: Sistemas Construtivos”, inicialmente publicado na revista “Arquitetura e Engenharia” e do qual quatro edições da EAUFMG se esgotaram, sendo agora reeditado pelo Curso de Especialização em Restauração e Conservação de Monumentos e Conjuntos Históricos”, com novas ilustrações e fotos, bem como revisão e notas de minha autoria, por autorização escrita de Sylvio, obra indispensável para o entendimento completo da arquitetura mineira e suas características construtivas. Não se pode esquecer, tão pouco, o pequeno e precioso “Arquitetura: Dois Estudos”, publicado pelo Instituto Nacional do Livro, em Porto Alegre, que analisa tanto a arquitetura colonial como a moderna em teses da maior validade, tratadas com a típica objetividade de Sylvio. A cuidada edição de “Minas: Cidades Barrocas”, feita em convênio com a Universidade de S. Paulo e com ilustrações de Renée Lebfèvre, tem, certamente, as mais belas e inspiradas crônicas de Sylvio sobre as cidades que tão bem conhecia e tanto amava. Pois só quem muito conhece e muito amou as cidades s barrocas de Minas poderia – como ele – descrevê-las em linguagem fluente e de fácil entendimento para o leigo mas, ao mesmo tempo, com tanto romantismo e poesia na caracterização arquitetônica de cada uma. Premiado na Bienal do Livro de São Paulo, este é um trabalho muito especial de Sylvio. Como importantíssimo é o seu “Mineiridade – Ensaio de Caracterização”, em que Minas é estudada com carinhosa ternura e objetivo espírito analítico. Através da arquitetura, em síntese que só a cultura e a vivência de Sylvio poderiam produzir, as características sociais, econômicas, históricas e políticas das Minas são examinadas e sintetizadas com riqueza de exemplos e profunda erudição que não cansam mas, pelo contrário, incitam o leitor a refletir e a ponderar com ele. Será lançado agora, em São Paulo, seu livro póstumo sobre o Aleijadinho, que aguardamos como outra obra marcante de seu conhecimento e seu amor à Minas. E isto sem falar no pequeno mas essencial “Vocabulário Arquitetônico” e nos artigos que escreveu para publicações internacionais como o Boletim da Universidade da Venezuela e a revista “Américas”, da OEA, entre outras. Ou, ainda, o magistral trabalho sobre a formação de cidades mineiras que marcou sua presença no “Primeiro Seminário de Estudos Mineiros” da UFMG.

Urge organizar – e quem sabe possa fazê-lo em breve – uma bibliografia completa de Sylvio e que inclua, também, uma análise mais ampla de sua obra arquitetônica e de sua filosofia. Que ele soube resumir muito bem nas cartas que escrevia, como em uma que tenho, datada de Paris, em abril de 1965 : “Costumo dizer, tirando da Bíblia, há que dar testemunho de nós mesmos nesta vida”, E melhor nem mais belo poderia ser o testemunho que o próprio Sylvio nos deu – seu humanismo, em suas múltiplas atividades culturais, sua personalidade rica ainda que contraditória, seu amor à Minas – e do qual tive a imensa sorte de, por duas décadas, poder participar.

Fotos: Sylvio de Vasconcellos
Obras: Jeferolla/Hjteixeira


A PROPÓSITO DE UMA CASA

(Mardia Gianetti – Residência)

Sylvio de Vasconcellos – Arquiteto (Transcrito da Revista Arquitetura e Engenharia no. 4/1947)

É incontestável que a permanência do espírito acadêmico, o gosto das adaptações, do ornamental decadente e da falta de preocupação com o espaço e o tempo, refletem-se, ainda, em quase toda a nossa a arquitetura. A causa disto pode ser encontrada no próprio desequilíbrio social e na decadência artística que perturbou e perturba ainda a marcha de nossa evolução. Não deixa, também, de ser um sinal de impotência frente aos nossos próprios problemas e às nossas dificuldades. Por isso mesmo, têm encontrado no Brasil campo favorável à sua expansão o cinema mal feito, as missões artísticas estrangeiras e a arte fácil. Não que devamos abandonar o passado e as boas influências pelo que elas contenham de sugestão, mas é necessário que, transpondo o já realizado, olhemos para o futuro. Os estilos não podem ser assim improvisados, mal vertendo-os o nosso colonial, omissões, jogando-se aqui e ali elementos de decoração clássica sem maior cuidado. A estas fantasias desarrasoadas e que tanto atendem ao gosto apurado de populações deficitárias ou individualidades rapidamente enriquecidas, sem base cultural, deve suceder um estilo mais ligado à época, aos materiais e às nossas possibilidades. Paradoxalmente, o Brasil por algumas obras, já realizadas, não está alheio a esta renovação. E cabe aqui lembrar os homens que nos proporcionaram esta boa arquitetura pela sua formação espiritual e pela coragem que revelaram.

Frisando a importância destes conceitos, devemos considerar ainda que a casa tem sobre a sociedade, através da família, uma influência bem mais forte do que possa parecer. Se ela reflete o meio, por sua vez nele também atua marcadamente, seja na formação dos novos homens e mulheres – com a criança – seja pela adaptação do adulto com o maior ou menor; impulso de beleza que possa sugerir. Verificamos que formas mais novas e mais puras ocorrem em datas de renovação e afirmação espiritual e mesmo política, tornando-se, por outro lado, um dos fatores desta renovação. Em ambiente de cópia, de pobreza, de dificuldades, não pode a gente sentir-se bem.

Se a montanha, o mar, a cidade, determinam caracteres definidos, evidentemente a casa, pelo seu muito maior contacto com o homem, interna e externamente, deve ter, também, influência decisiva na sua formação.

Quando temos uma fachada e procuramos dar-lhe sentido, aplicando sobre ela, sem maior estudo, um elemento incorporado, digamos, a construções recuadas de dois séculos, nada mais fazemos que confessar a nossa incapacidade em fazer a nossa estética. A própria Igreja, sem prescindir de suas origens, não é estática mas, pelo contrário, evolui com o mundo, e, muitas vezes, à frente dele.

Vem aqui a já velha consideração de que apenas na arquitetura nos agarramos ao passado. Por que não usarmos hoje automóveis decorados com varais de “cadeirinhas” ou iluminados por lanternas D. João V? Mesmo na moda feminina, onde às vezes voltam ao uso modelos de inspiração de outras épocas, podemos notar que estes modelos são sempre transpostos à estética moderna e não permitem confusão entre o antigo e o novo, a não ser que se transformem em “fantasias”. O sentir mudou. Por que, então, só a casa deve parar em qualquer século e viver de recordações? Uma igreja gótica, hoje, não seria tão absurda como um hipódromo com os foqueis vestidos de armaduras? Uma casa estilo normando em nosso clima não seria tão ridículo como andarmos calçados de skís? Estes pensamentos presidiram a nossa preocupação ao estudarmos a casa. O terreno, de duas grandes frentes e pouco fundo, pela sua própria conformação triangular, define a situação a ser usada, e os inconvenientes da proximidade com o exterior são sanados com a transferência dos jardins para o interior e pela vedação visual da rua.

A planta desenvolve-se por quase toda a frente e seu bem pensado programa torna-a um conjunto típico de família em formação, preocupada, tanto no conforto material, como no espiritual. E aqui, se a casa reflete a mentalidade de seu habitante, ajuda-o também em seus anseios e contribui para a formação da descendência. O morador é recebido em grande sala de viver, ampla em três dimensões. A altura é dupla do resto da habitação. Os grandes ambientes de pouca altura comumente oprimem e negam, deformando-a, sua própria dimensão horizontal. A esta sala se liga a de refeições, também capaz de conter as nossas gostosas reuniões familiares ou festivas, características das mais agradáveis de nossos costumes.

Os serviços correspondentes se ligam ao local do uso em posição discreta e com acesso direto da rua, sem interferências de circulação. Na outra frente estão o escritório e o estúdio, em lugar calmo e sossegado. Da sala de viver vamos ter à de estar, em balcão como um prolongamento daquela, porém, com maior intimidade. Seguem-se os dormitórios e sanitários correspondentes, a insolação foi estudada de modo a proporcionar o máximo de sol nos dormitórios, principalmente no inverno, e o mínimo nas salas de conforto e meditação. O jardim se incorpora à casa pela varanda de trás e pelas grandes aberturas voltadas para ele. Da rua o “privace” é conseguido pelo emprego de painéis rotulados que contribuem também para a beleza da fachada principal. Jogando-se as alvenarias brancas com as pedras neutras e as madeiras coloridas procura-se conseguir uma boa composição, enobrecendo os materiais típicos de nossa arquitetura.

E se, com tão belas idéias, não conseguimos realizar obra também bela, isto é devido, de fato, à nossa pobreza que é muito para tão grande vôo.

O HOMEM ALTO

Éolo Maia

Desenho Eolo Maia

Um grupo de estudantes e arquitetos, maioria professores do Paraná, entre eles:
Roberto Gandolfi, Jaime Lerner, Marcos Prado e outros.
Despedem-se de um homem alto.
A tentativa de se reorganizar o curso de arquitetura da U.N.í.
Fora novamente bloqueada.
Partem…
O homem solitário, muito alto.
olha as esculturas de Mário Cravo.
Talvez com saudades dos profetas de Congonhas.
Mistura-se com elas num conjunto
de grandeza e solidão.
Março de 68
saguão do Hotel Nacional, em Brasília.


Cartas

Minha correspondência com Sylvio de Vasconcellos começou quando ele ainda estava no México e se prolongou até sua morte em Washington. Foram mais de 70 cartas que ele me mandou (não incluo, aqui, cartões de Natal, bilhetes ou recortes de jornais avulsos); nelas, conversamos sobre tudo. Política, arte (arquitetura e cinema, especialmente), futebol, coisas de Minas de que Sylvio sentia muita saudade. Tenho vontade de algum dia, editar todo esse material em forma de livro; será um documento precioso, a registrar o pensamento de um homem que, forçado a deixar seu país, nunca deixou de estar em contato com sua terra e sua gente.

Paulo Augusto Gomes.

Dec. 28, 1977

Meu caro Paulo, como gostam de dizer os americanos, boas e más notícias em sua última carta. Primeiro as más: a gripe, o atraso da conclusão do apartamento. As boas: o fim do curso e os novos planos. É realmente uma lástima o que se passa com a indústria de construções no Brasil. Nunca um orçamento cumprido, nunca um prazo obedecido. Coisa que virou rotina. É uma pena que vocês não tenham podido ingressar nas festas de natal e no ano novo já no ninho próprio. Paciência. Faço votos que tudo se resolva em breve tempo. E que também a gripe já se tenha ido antes que 78 se instale.

Vi “Manchete” sobre os 70 anos de Niemeyer. Documentário sobre ele parece-me uma excelente idéia. Pondero apenas que o tema sugere dois enfoques distintos: a pessoa e a obra. Joaquim Pedro e Fernando Sabino já tentaram documentários biográficos: Manoel Bandeira, Gilberto Freire e não sei quem mais. Fica um filme de falação que creio de menor interesse público por demais intelectualizado e desprovido de sinestesia (beleza de movimento). Documentário para arquivo. É o que acho. Claro que não havia outra maneira de documentar escritores, cuja obra é abstraída de pensamento.

No caso de Niemeyer dá-se o contrário. Há uma obra real a ser documentada e é ela, principalmente, que importa. Niemeyer é, por sinal, pessoa difícil, áspera, com pouca capacidade de comunicação e de expressar-se. Chega a prejudicar sua obra com as explicações que lhe dá. Não é, como Corbusier ou Frank Lloyd, um doutrinário. É antes um intuitivo. Mais sensibilidade do que raciocínio.

Muito mais importante é, pois, mostrar a obra e não a pessoa. A obra é que é admirável. Neste caso não vejo necessidade de obter sua anuência para o documentário. Sua obra é pública, de domínio público, por ser arquitetura permanentemente plantada em logradouro público. Arquiteto não tem interferência em fotografia ou filmagem de sua arquitetura. Como não tem em seu uso ou contemplação.

Com respeito à obra não creio que comentários paralelos de Niemeyer viriam a contribuir, para um documentário melhor. Talvez contribuísse para o contrário. Tem preferências e manias que certamente restringiriam a liberdade necessária do diretor. É possível que eu me engane, esteja enganado redondamente, mas é essa a impressão que tenho. Quanto ao documentário da obra há vários caminhos ou enfoques a tomar.

Cronologia? Para mostrar sua evolução? Ordem do mais simples ao mais complexo? Residências aos conjuntos argelinos? Espírito barroco que o distingue do “classicismo” corbusiano?

Quanto ao barroquismo é onde entra a raiz de seu profeta, conforme se vê em sua carta. Há um livro importantíssimo na espécie: “Persistência do barroco na arquitetura brasileira” de Leopoldo Castedo. Fundamental.

Susy que me perdoe, mas não vejo relacionamento explorável entre Aleijadinho e Niemeyer. O primeiro era fundamentalmente escultor de ornatos. Sua contribuição à arquitetura limitava a fachadas (fachadista) e, ainda assim discutível – muito. Os dois só se encontram porque ambos trabalharam barrocamente. Um não se filia ao outro. Ambos filiam-se a um mesmo espírito “barroco”. O barroquismo de Niemeyer é barroquismo mesmo, genérico; não o barroquismo especifico, caligráfico, de Aleijadinho. O que fez Niemeyer foi reduzir o barroco a seu esquema fundamental, em sensualidade, ilimitação, descontinuidade, valorização de espaços e de massas, eliminando todo o supérfluo. Tendência brasileirista, nativa, de interpretação dos estilos universais. O mesmo que Machado de Assis fez com a literatura. É o que se pode chamar de “características ou peculiaridades constantes” da maneira de ser artística do povo brasileiro. Talvez fazendo das tripas coração, procura expressar o máximo com o mínimo. A forma em si, escorreita, limpa, não adjetivada. Isso começou em Minas colonial (mas não só com Aleijadinho, na arquitetura, na literatura (com Gonzaga), e na música. Porque no litoral brasileiro vinham as coisas prontas da Europa. Em Minas foram feitas aí mesmo, com os poucos recursos disponíveis. Há um artigo meu a respeito, publicado no Estado de São Paulo (que não tenho comigo): “Constantes peculiares da arte brasileira”. Acho.

Ora; Aleijadinho entregou-se precipuamente à adjetivação. Ao ornato, à decoração. Era escultor, artesão em princípio. Rococó. E rococó é a decadência do barroco, seus excessos, seu maneirismo e feminina fragilidade. Embora tenha conseguido fazer, ainda assim, obra admirável e ascendente em lugar de decadente (por isso mesmo é gênio) caracterizou-a pela caligrafia, pelo tratamento em minúcia. Com o qual Niemeyer jamais preocupou-se. Niemeyer é, também, escultor. Mas não caligráfico. De massas, volumes, formas. Poder-se-ia dizer, talvez, tratar-se de um barroco-concretista. Onde o concretismo responde à modernidade, ao conceito ao conteúdo. Ficando o barroco na intenção plástica, no emocional.

Acho que estou falando demais. Ponto final. Desculpe-me. É só vontade de estimulá-lo. Entusiasmo por idéias e iniciativas.

Espero que Los Angeles vá além da idéia e se objetive. Para podermos tê-lo aqui.

78 está está entrando, com expectativas e promessas.
Vá em frente. Tudo só tem que melhorar mesmo.

O abraço sempre muito amigo de Muriel e de Sylvio

Meu caro Paulo,

sua viagem ao Rio, com Paty , me lembra a hipocrisia da sociedade americana (e brasileira também) revelada na mania de fixar um horário para as saídas noturnas das filhas, com seus respectivos “dates”. Ou mesmo diurnas. Aqui se diz, por exemplo: não além das dez horas da noite, ou meia noite. Com isso está salva a honra familiar. Como se não se pudesse fazer amor antes das dez, ou mesmo à luz do sol.  São as chamadas mentiras convencionais de nossa sociedade. Algumas, como esta, tão absurdas, ingênuas, infantis, e inócuas, como outras. Dois sexos opostos podem, por exemplo, se agarrar, abraçar, se esfregarem em público sem qualquer condenação. Com música. Dançando. Se continuam abraçados, depois da música cessada, ê um escândalo. Nisso vivemos.

Enquanto Belo vai vivendo, também, os casos da Dame Margot, das Maristelas e dos Sassos. A comédia humana, como dizia Balzac. A triste comédia humana que nem vale a pena chamar-se tragédia.

Você não estava enganado. É claro que minha opinião de Belo se infere de experiência pessoal. Experiência esta mais válida do que outras, talvez, porque envolvida em uma teimosia que teimosamente procurou desmenti-la. Não sei se já lhe contei, mas por volta de 1940 uma revista de Belo – “Alterosas” – fez uma enquete entre pessoas conhecidas simplesmente perguntando “porque não haviam ainda saído de Minas”. Veja você: creio que em nenhum outro lugar do mundo um periódico jamais teria feito uma pesquisa  assim.

Pois foi feita. E pior : todos os perguntados deram desculpas muito profundas para justificar a não saída. Todos. Todos só não haviam saído porque não puderam, em virtude de um motivo ou outro. Todos, menos eu. Disse que não havia saído porque gostava do lugar e achava que valia a pena. Agora lhe pergunto: valeu? “Mudaram os outros, ou mudei eu?”. Não lhe vou repetir na lista imensa dos casos referentes. Dos casos mais recentes lhe recordo apenas Carlos Kroeber que é ator consagrado no Rio e era apenas um veado em Belo. Franz Weissman sempre foi desconhecido em Belo; tem hoje prêmios internacionais no Rio. Não há um só nome nacional de mineiro que tenha ficado em Belo. Mas há milhares de nomes nacionais de mineiros fora de Minas.

Você tem também razão quando fala do amor dos mineiros emigrados por Minas. Sou um deles. A gente fica vendo cá fora o valor de muitos mineiros desconhecidos em Minas, mas glorificados fora de Minas. A começar pelo Aleijadinho, passando por Bernardo de Vasconcelos, António Carlos, o liberal, Tiradentes, Pelé, Dantas Mota, Carlos Drumonnd, Rodrigo de Melo Franco e já vou eu de novo fazendo listas. A gente se orgulha do que nasceu em Minas.

Do que foi da primeira civilização urbana, industrial, liberal em Iodas as Américas. Minha família chegou a Minas em 1760 e deu, além de Bernardo, um Presidente de Província (primeiro autor da história mineira, um Senador historiador, um Presidente da Província do Rio Grande do Sul e ministro em Portugal, e meu pai, apreciado na “Europa, França e Bahia”, mas apenas um saudosista, fala porque tiveram atuação fora de Minas, Que mais quer você? Claro que falo por experiência própria. Quis teimar e ficar. Fiquei ser Minas. Não o que Minas é, hoje. Onde Teófilo Otoni ninguém sabe quem é, embora seja nome de cidade. Amo a Minas que foi a primeira região do Brasil a escolher em praça pública seu governador (l 710). A primeira das Américas. A primeira a lutar e morrer pela independência nacional. A única a inventar um barroco próprio e a ter por filho António Francisco Lisboa e Manoel da Costa Ataíde).

Amo a Minas que produziu o “Fico” de D. Pedro l e o levou à independência depois reclamada por São Paulo apenas por acidente geográfico. Amo a Minas que derrubou D. Pedro porque feria a constituição. Amo a Minas que inventou o voto secreto em 1930, depois de fazer a revolução, liberal, de 3842. Amo a Minas onde só Tomaz Antonio Gonzaga fez versos de qualidade e a Minas que prendeu um Governador (1720) que exorbitava em arbítrio. Amo a Minas que deu Pelé, Carlos Drumonnd e educou Rubem Braga, Carlos Castelo Branco e Wilson Figueiredo. A Minas que deu o movimento de Cataguazes, literário e cinematográfico. Amo a Minas que produziu Grande Sertão Veredas. Mais amores teria, não fosse tão curto o papel desta carta. Mas não posso amar a Minas que a TFM ou cuja Assembléia Legislativa votou unanimemente recomendação contra o divórcio. Essa não é Minas. São as Gerais inundando as montanhas as montanhas mineiradoras onde germinara a liberdade. Compare você o que existe lá fora com o que há em Minas. Um mineiro – Saboto Magaidi – é secretário de cultura da Prefeitura de São Paulo. Brilhando. Na Secretaria de Cultura da Prefeitura de Belo temos o Sasso. Veja os artistas e críticos de arte de São Paulo e Rio, ou mesmo de Recife, Curitiba e Porto Alegre… Em Belô temos Maristelas, Morgans e grupinhos de elogios mútuos. Amilcar de Castro teve Prêmio da Guggenheim. Agora voltou a Minas. Que está fazendo e e o que fará? Dá aulas. . . E melancolicamente fenece. Compare o gramático Aurélio Buarque com o gramático Mata Machado. É o último pior que o primeiro. Não; apenas está em Minas.

Você me fala de Murilo Mendes. Um amigo muito querido que se foi. Que era em Juiz de Fora? Nada. Fora de Minas está internacional. Para sempre. E não estará, nunca, Emílio Moura, quiçá melhor poeta que Murilo, salvo seja.

Os tentáculos de Minas são fortes. Acredito. Pois foram fortes comigo e me engoliram. Mas não sei de ninguém que tenha saído e fracassado. Ainda hoje estou vendo em “Veja” o caso de um rapaz meineiro que veio estudar economia nos EE.UU. e hoje tem uma loja de flores exilosa em N. Iorque. É sempre assim. É claro que há tempo de rir e de chorar.  E tempo de decisões. Os tentáculos da rotina são fortes e, de fato, representam uma esperança de vida mais tranqüila. Se é tranqüilidade que se deseja.

Não leve a sério o que lhe escrevo. Repito que são mais solilóquios que me saém, reprimidos, quando lhe escrevo. Olho para você como se olhasse para mim mesmo quando tinha sua idade. E me vêm remorsos, arrependimentos tardios. Que expresso nestes solilóquios. Longe de mim estar a lhe dar  conselhos. Apenas lhe digo o que me vai na alma, sentimentos de mim mesmo. Nada mais. Velhice, talvez.

Que não impede ou esmorece o grande afeto que lhe temos, e a gostosura de poder conversarmos de vez em quando. Para terminar como sempre, com este abraço sempre muito amigo. De Muriel e de Sylvio.

Não perca a Volta da Pantera Cor de  Rosa. Não é filmologia, mas dá para rir um bocado,

Gostaríamos de muito conhecer Paty. Cada vez mais nos perece que vocês dois fazem um casa! Invejável.


SYLVIO DE VASCONCELLOS, O PROFESSOR

Arquiteto Ronaldo Masotti Gontijo

Corria a década de 50, já em sua metade final, e não é exagero afirmar-se que todo o corpo discerne da Escola de Arquitetura, incluídos os estóicos alunos do Curso de Urbanismo, se acomodaria com razoável conforto em qualquer das salas de aula hoje destinadas à disciplina de Planejamento. Ainda longe dos benefícios e malefícios advindos com a reforma pós-64, o ensino da arquitetura tinha conotações marcadamente acadêmicas, diretamente vinculados às diretrizes estabelecidas pela Congregação. Boas intenções nunca faltaram a seus membros, sempre homens íntegros, dedicados e profissionais de renome. Mas é inegável que o Hermestismo e o academicismo que então davam a tônica do currículo estavam diretamente ligados à ortodoxia dos mestres que integravam o citado colegiado (fato comum às faculdades de época), em sua maioria engenheiros e bacharéis, entre os quais ainda quase todos os idealizadores e fundadores da Escola. Deve-se reverenciar a memória dos já falecidos: o patrimônio cultural que a Escola hoje representa é fruto básico do idealismo e dos sacrifícios destes antigos mestres.

Nem sempre, infelizmente, as boas intenções são suficientes quando se busca um esforço supremo para renovar. É significativa a referência ao episódio de 56, quando a Congregação formulou e apresentou proposta de reforma do currículo a partir do simples desdobramento de cadeiras de cunhos artístico e técnico, mantendo-se a mesma estrutura então vigente e, pior dos males, estendendo-se a duração do curso para 6 anos. No bojo da proposta, nada que promovesse uma efetiva melhoria da qualidade do ensino, preocupação alguma com o real entrosamento de disciplinas afins, colocações aleatórias frente à  realidade então vigente. A reação dos alunos foi imediata e o amplo debate promovido sustou a tentativa que então brotava. De positivo, o episódio deixou como saldo o atendimento de antiga reivindicação do DA, qual seja, o direito à presença de seu presidente às reuniões de Congregação, embora sem direito a voto.

Nada mais natural, portanto, o despontar de dois professores integrantes da Congregação, ambos arquitetos e então jovens: Sylvio de Vasconcellos e Eduardo Mendes Guimarães Jr.; este, como o primeiro, também precocemente falecido, tão logo assumiu o exercido efetivo da cátedra foi designado para chefiar o Escritório Técnico de Projetos da Cidade Universitária, afastando-se da regência da cadeira. Para os alunos de então, a figura do Prof. Sylvio se revestiu de características especiais: sua condição de catedrático, sua cultura, sua facilidade em dialogar e se expressar, sua pouca idade, seu renome nacional, fizeram-no elemento natural para receber e entender as inquietações formuladas pelo corpo discente e é cerro que os queixumes e reclames da época em nada diferiam em intensidade dos de agora. Sem paternalismo e sem assumir qualquer postura de gênio, sempre tranqüilo e atencioso, o Prof. Sylvio esteve constantemente em colaboração com as iniciativas do DA que objetivavam reformular ou melhorar as condições do ensino, mesmo em horários e períodos extracurriculares. A sua atuação e o seu apoio, num sem número de ocasiões, foram decisivos para a organização e preparação de seminários, promoção de exposições de trabalhos, vinda de conferencistas, enfim, uma constumaz disposição de perseguir tudo aquilo que, direta ou indiretamente, abrisse qualquer luz ao ensino de arquitetura. É bem verdade que, então um bom número de professores assistentes já se engajara nas proposições reformuladoras e, lado a lado com os alunos, procuravam em amplos debates os fundamentos de uma proposta renovadora. A época era de ebulição, alimentada pelo calor trazido por colegas chilenos ao II Congresso Panamericano de Estudantes de Arquitetura, realizado em 56: uma fascinante experiência fora implantada no Chile, transformando-se o curso num imenso atelier, espinha dorsal para onde convergiam as informações de ordem prática, teórica e técnica. Entretanto, o processo de luta por melhores condições de ensino sofreu a curto prazo solução de continuidade, quando todo o corpo discente se uniu para enfrentar aquilo que na ocasião se configurou o maior dos males.

Mas nem tudo foram flores no que diz respeito ao relacionamento do Prof. Sylvio com o corpo discente. Por proposta sua, a Congregaçãoaprovou a criação de um curso de Belas Artes a funcionar na Escola. Não cabe aqui qualquer análise sobre o assunto, nem questionar as razões que levaram o Professor a tal proposição.

 Ressalte-se apenas que, pela primeira vez, alunos e o professoro se situaram em campos opostos. Aos debates e discussões sobre o tema, sucedeu-se greve geral dos alunos, decretada por unanimidade. Embora o comando do movimento buscasse uma colocação eminentemente teórica e embasada em experiências já registradas na história, o assunto foi objeto de tanta polêmica, cobertura pelos jornais e até mesmo emissoras de rádio que, vez por outra, não pôde ser resguardada à figura do prezado mestre. Contornou o impasse o Reitor de então, mediante convênio entre a firmado o acordo, o Prof. Sylvio já havia se dirigido à Congregação propondo a extinção do curso, não pelo fato de não mais acreditar no provável acerto de sua idéia, mas com a finalidade única de acalmar as tensões e fazer voltar a paz à escola. Se no ano seguinte os alunos recorreram novamente à greve geral, aí não mais se questionava o curso de Belas Artes, mas, tão só, lutava-se pelo cumprimento do convênio pacificador. Nesta segunda greve, de radicalismos e desdobramentos incríveis, o corpo discente já não mais combatia as idéias de um professor, de um arquiteto, de um futuro colega. A favor do Professor cabe destacar que findas as hostilidades, o prezado Mestre sepultou o assunto e manteve as suas tranqüilidade e eficiência de sempre e jamais se valeu de sua posição para tentar perseguições ou revanchismos aos alunos que mais se empenharam ao combate às suas idéias.

Da atividade letiva do Professor ficam recordações substanciais. No recinto da sala de aula as suas explanações primavam pela clareza fruto de um processo racional de encadear as idéias com propriedade. Embora dominando com requintes de perfeccionismo a matéria subordinada à sua cátedra, Arquitetura no Brasil, de antemão informava que seus conhecimentos deveriam ser entendidos como pessoais, não devendo, portanto, pretender esgotar o assunto. Para tanto, estimulava com freqüência, à nível de debates, as porventura tímidas dúvidas levantadas pêlos alunos. Há que se entender bem que o curso de então era fechado e cada disciplina se bastava por si própria, encerrada em um livro texto, quando havia, ou mesmo limitada por apostilas e anotações de aula. O grande mérito do Prof. Sylvio foi não se prender aos alfarrábios e esconjurar sempre as apostilas, buscando um enfoque bem amplo para a disciplina a seu cargo: era comum assim, que um assunto tratado em classe fosse objeto de pesquisas e estudos dos mais variados livros e até mesmo revistas, alguns dos quais até mesmo nem específicos de arquitetura. O gosto pela leitura, pela pesquisa e posterior confronto de idéias a negação de dogmas e conceitos duvidosos já enquistados, eram constantemente levantados em classe. A cadeira de Arquitetura no Brasil abria um painel amplo e livre aos a ortodoxia acadêmica ministrada nas demais disciplinas. Não é demais afirmar que o professor, então, conseguia uma atividade letiva de nível realmente universitário. Mais ainda, a arquitetura não era vista como fenômeno isolado: o professor a inseria no global, destacando suas relações dentro do contexto, o que permitia abordagens históricas, sociais e específicas, estas na medida em que outras atividades artísticas e demais ramos do conhecimento se aliaram e se fizeram presentes às correntes mais específicas do pensamento arquitetônico. A dinâmica que o professor conferia à sua cátedra vinha completar suas posições tantas vezes colocadas em palestras e conferências e que diziam respeito às suas preocupações com o mercado de trabalho do arquiteto. Dentro da realidade brasileira da época, entendia ele que o arquiteto poderia limitar-se como profissional, tornar-se mesmo um mero agente da especulação imobiliária ou simples executor de planos governamentais, caso não assumisse uma postura mais analítica e realística: o arquiteto devia estar preparado para questionar decisões, levantar problemas e soluciona-los. Para tanto, o arquiteto, desde cedo, precisava estar apto ao debate, assumindo posições de cunho marcadamente cultural. E este lastro de cultura devia ter suas formulações nascidas no âmbito do curso na própria Escola, aprofundando-se os ensinamentos teóricos e históricos através de uma visão crítica, incentivando-se o livre debate e o confronto de opiniões.

Algo desconfiado e ensimesmado, como todo bom mineiro, apreciava e curtia ao máximo, porém em termos contemporâneos, todo o imenso legado arquitetônico do período colonial. Tanto que hoje a referência ao termo “mineiridade” se liga de modo indissolúvel ao Professor. É de se louvar, também, a sua disposição em assumir sempre que possível, em caráter interino, as vagas porventura surgidas com o impedimento de qualquer professor da disciplina de planejamento arquitetônico.

Mesmo fora de sua especialidade letiva o Professor conseguiu resultados surpreendentes, na medida em que levou o debate e levantou polêmicas diretamente sobre as pranchetas. A seu favor, também, a eterna disposição para representar a Escola nos congressos e seminários estudantis, chefiando ai caravanas organizadas pelo DA.

Guarda-se também dele seu profundo desgosto, uma indescritível decepção, no momento em que a Direção da Escola, em reunião de Congregação, o ameaçou com fichas do DOPS e vitupérios outros. Já bem antes de 64 o macartismo tupiniquim ensaiava seus primeiros e trôpegos passos, muito embora a democracia por então não fosse adjetivada. Teria assim o Professor já intuído uma espécie de premonição, o que viriam a ser os duros e violentos anos vindouros, pós-64 e, principalmente, pós-68, quando o dedurismo e o puxassaquismo se transformaram em virtudes patrióticas?

Bem antes de seu recente falecimento, o sistema conseguiu matá-lo de forma nada sutil, no instante em que tapou-lhe a boca e impediu-o de lecionar. Com isto, perdeu a Escola, perdeu a comunidade mineira, o concurso de uma grande figura humana dotada de rara inteligência. No fundo, resta a tristeza de ver o país degradar seus homens de talento e abrir mão dos mesmos quando se procura a afirmação nacional. As boas idéias sempre sobreviveram aos regimes mais rudes e arbitrários, mesmo que se afaste, degrade e mate homens de pensamento e ação. O legado cultural do Prof. Sylvio permanece indestrutível: seus ensinamentos, seus livros, sua produção intelectual, continuam firmes e serão sempre de grande valia para as futuras gerações.


A ÚLTIMA CRÔNICA DE SYLVIO DE VASCONCELLOS

Aos amigos da “Vão Livre”:

Recebi, através de Muriel Vasconcellos, a última crônica escrita por Sylvio exatamente um dia antes de ser hospitalizado no George Washington Hospital, de onde não mais sairia, ficando encarregada de sua divulgação, já que teria sido enviada ao “Estado de Minas”‘ se houvesse tempo e oportunidade. Ao receber, logo após, um telefonema de Muriel, de Washington, lembrei-lhe a possibilidade deste último texto ser divulgado não pelo jornal, mas sim no número especial de “Vão Livre”, dedicado à Sylvio, o que foi imediatamente aprovado. Aqui está a crônica como mais uma prova do amor de Sylvio por Minas e de seu constante interesse pelas atividades culturais também – o sonho dele se tornará realidade?
É o que eu espero muito sinceramente.


Suzy de Mello


WASHINGTON: São essas coisas que me dão tristeza. Falei do assunto a Murilo Badaró quando veio aos Estados Unidos cerca de dois anos atrás.  Mostrei-lhe a importância da iniciativa para o progresso industrial do Brasil, apontei-lhe a glória que teria Minas em sendo pioneira em matéria, acenei-lhe com a possibilidade de tornar-se figura histórica promovendo o projeto. Murilo estava preocupado com as eleições americanas e sua brilhante carreira parlamentar: não se interessou.

Apareceu aqui, depois, Luciano Peret. Seu esplêndido trabalho de preservação de monumentos arquitetônicos mineiros deu-me largadas esperanças de vir a dedicar-se à idéia. Ofereci-lhe argumentos: não ha progresso sem mentalidade progressiva; estava na hora de se criar no Brasil esta mentalidade, ajuntando exemplos de progressos passados, permitindo que crianças se familiarizassem com o progresso de criação cientifica e levando os adultos a compreenderem como a ciência, através dos tempos, vem fazendo nossa vida mais fácil de ser vivida.

Luciano Peret, muito sério, pareceu-me convencido. Prometeu estudar o assunto e levá-lo para frente. Com o que animei-me de contente e fiquei esperando. Esperei sentado como aconselhava a boa gente de antigamente porque tempo passou e mais notícias não tive da novidade.

Aí escrevi artigo de jornal na expectativa de que viesse a encontrar apoio de quem de direito. Mostrei o que são os museus da Fundação Smithsonian em Washington, com milhões de curiosos a percorrê-los cada ano. Muito mais sedutores e importantes do que a Disneylandias que vêem atraindo a criançada incauta desses brasís. Ao que pude apurar, meu artigo mo produziu qualquer efeito.

Abro hoje um jornal brasileiro da semana passada e me estatelo: foi inaugurado na Bahia o Museu de Ciências e Tecnologia, no parque Metropolitano de Pituassu, cidade de Salvador. Com a assessoria de um tal Walter Winton, do Museu de Ciência de Londres.

Minas perdeu a parada. Por pura preguiça. Porque museus deste tipo são facilíssimos de se fazerem. As peças que expõem não são Picassos de milhões, nem jóias ou móveis antigos de ouro e jacarandá trabalhado. São aparelhos velhos, máquinas de costura, fogões em desuso, carros de bois, engenhocas de moer cana, máquinas de escrever, relógios de peso, bombas de gasolina manuais, tudo que o engenho humano produziu no passado e que evoluiu para formas continuamente aperfeiçoadas.

Pode parecer bobagem tal museu, mas não é. Gerações mais novas, que já encontraram tudo funcionando, mal sabem como funcionam e não percebem o longo caminho percorrido pela tecnologia para nos oferecer as maravilhas de hoje.

Não são cursos de pós-graduação que gera know-how. Antes deles é preciso haver mentalidade e esta só pode existir quando o meio ambiente a estimula. É o que os Estados Unidos ensinam.

Minas perdeu a prioridade que sonhei e persegui. Contudo, ainda poderia fazer agora, não o primeiro mais, senão o melhor museu de tecnologia do país. Tem tudo para tanto, e não me venham dizer que não há dinheiro. Há, e é muito pouco o necessário. O mais é capacidade de iniciativa e boa vontade. Um pouco menos de interesse imediatista e um pouco mais de amor ao progresso.

O que fico esperando de Murilo, Luciano e outros muitos com voz na república. Para que essas omissões de Minas não me entristeçam mais.

Era o que tinha a dizer, pois mais não me foi perguntado.

 Sylvio de Vasconcellos


SYLVIO DE VASCONCELLOS
CURRÍCULO VITAE

• NASCIMENTO : 14 de outubro de 1916 – Belo Horizonte .MG
• FALECIMENTO: 14 de março de 1979 – Washington. D.C.

FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA

• Engenheiro-Arquiteto formado em 1944 pela Universidade Federal de Minas Gerais, tendo recebido medalha de ouro por média excepcional.
• Urbanista formado em 1952 pela Universidade Federal de Minas Gerais, tendo recebido medalha de ouro por média excepcional.
• Doutor com grau recebido em concurso público de provas e títulos para a cátedra de “Arquiteiura no Brasil”, da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, em 1953.

CRONOLOGIA PROFISSIONAL

1978
• Pesquisador principal, tendo recebido uma bolsa de US$ 27.000,00 do “U.S. National Endowment for lhe Humanities” para estudo e versão para o inglês de documentos selecionados do século XVIII referentes a Minas Gerais.

1973/1977
• Trabalhos diversos como consultor da organização dos Estados Americanos (OEA) para assuntos da cultura Brasileira, preservação de patrimônio artístico e histórico e desenvolvimento urbano.
• Consultor da CBS (rede americana de TV) para a preparação de um filme sobre o barroco em Minas Gerais. 
• Conferências diversas e preparação de ensaios sobre arte barroca brasileira e mineira.
• Artigos diversos publicados em revistas internacionais (“Américas”, da OEA e “Boletim do Centro de Investigações Históricas e Estéticas de Caracas”) e em jornais ( Estado de Minas).
• 4 exposições individuais de desenhos (tinta).

1971/1973
• Especialista em desenvolvimento urbano , Organização dos Estados Americanos em Washington D.C. e na Cidade do México.

1970/1971
•Bolsista da Fundação Guggenheim, para a preparação de um trabalho sobre história

1970 e 1965
• Bolsista da Fundação Calousie Gulbenkian para pesquisa de origens brasileiras livro “Mineiridade”, que recebeu um prémio de erudição».

1969/1970
• Diretor Cultural do instituto Cultural Brasil-Estados Unidos, Beto Horizonte/M G.

1939/1969
• Chefe de Distrito (Minas Gerais) do Nacional? do Ministério da Educação e Cultura do Governo Brasileiro, responsável pela supervisão de todos os trabalhos de conservação conjuntos arquitflt&nicos (como Ouro Preto), quando colaborou! com Lúcio Costa e Rodrigo Mello Franco de Andrade.

1948/1959
•Professor da Escola de Arquitetura da UFMG, sendo catedrático a partir de 1953.

1963/1964
•Diretor de Escola de Arquitetura da UFMG.

OUTRAS ATIVIDADES

• 1968 – Professor de Teoria da Arquitetura na Universidade de Brasília.
• 1966 – Professor de Teoria da Arquitetura na Universidade de Santiago do Chile.
• 1961/1963-Fundador e diretor do Instituto Escola de Arquiteiura da UFMG.
• 1960/1962 – Diretor e membro do Conselho do Museu de Arte da Prefeitura de Belo Horizonte.
• 1958/1960 – Chefe do Serviço de Plano Diretor da Prefeitura da Belo Horizonte.
• 1955-Presidente do Departamento de Minas 1951/1952 -Diretor da Escola de Betas Artes de Minas Gerais.
• Membro do Conselho Diretor da Fundação Álvares Penteado, de São Paulo.
• Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais.
• Membro da Associação de Críticos de Arte do  Brasil e da Associação Internacional de Críticos de Arte.
• Membro do Júri de Arquitelura da IV Bienal de São Paulo (j unta mente com Philip
• Conferencista convidado pelas Universidades de São Paulo, Rio Grande do Sul, Bahia e Rio de Janeiro.
• Citado no “Dicionário das Artes Plásticas no Brasil”, de Roberto Pontual, (Ed. Civilização Brasileira, Rio. 1969).

França (1 ano)
Portugal l 2 longas visitas)
Espanha
Argentina 12 visitas)
BoKvia • El Salvador • Honduras- Panamá- Peru
Chile (1 ano e meio)
Costa Rica l 4 visitas)
Gu alemã l a l 2 visitas)
México 116 meses)
Nicarágua (3 visitas)
Vivendo nos Estados Unidos (em Washington, D.C., desde 1969).

TRABALHOS E PUBLICAÇÕES

01. “Vila Rica – Formação e Desenvolvimento” – Tese da Concurso para cátedra – 1a. ed.: 1951. 2a. ed. : 1956, Instituto Nacional do Livro, Rio da Janeiro; 3a. ed. : Ed. Perspectiva, São Paulo.
02. “Arquitetura no Brasil” Sistemas Construtivos” • diversas edições, a última publicada pelo Curso de Restauração e Conservação de Monumentos e Conjuntos Históricos, em 1979. Belo Horizonte.
03. “Arquitetura Colonial Mineira”. Beto   
04. “Formação de Cidadãs na Região Aurífera Brasileira”, publicado inicialmente pela UFMG e depois pela Revista da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo.
05. “Pintura Mineira e outros Temas”, Belo Horizonte, Imprensa da UFMG. 1959.
06. “Arquitetura : Dois Estudos”, Porto Alegre. RS, Instituto Estadual-do Livro. .1968.
07. “Noções sobre Arquiletura” , Belo Horizonte, Imprensa da UFMG, 1963.
08. “Vocabulário Arquitetònico” , Beto Horizonte, Imprensa da UFMG, 1961.
09. “Capela de Nossa Senhora do Ó”. Belo Horizonte. Imprensa da UFMG, 1964 (edição de luxo, impresso ã mão, de 500 exemplares, faz parte da Coleção de Obras Raras da Biblioteca do Congresso, em Washington, D.C.).
 10. “Mineiridade – Ensaio de Caracterização” – Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1968. (Este livro, baseado em uma pesquisa feita em Portugal através da Fundação Gulbeokian, recebeu o 1o. prémio na categoria “erudições”, em concurso da Prefeitura de Belo Horizonte, 19681.
11. “Minas • Cidades Barrocas”. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1968. (Esta edição de luxo Bienal de São Paulo e recebeu o Prémio Jabuti como melhor livro de sua categoria em 19681.

ARTIGOS DIVERSOS, PUBLICADOS EM VÁRIOS JORNAIS

• Revistas “Américas” ( da 10EA – artigo sobre “O Milagre Cultural de Minas Gerais” IFev. 19741 e o número especial – “O Barroco no Brasil” (junho-julho 1974t. com tradução de é publicada em Washington, D.C. USA).
• Centenas de artigos em jornais brasileiros – como o “Estado de Minas”, “O Estado de São Paulo” e o “Jornal do Brasil”, em diversos

Marcado com , , ,

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *