Sylvio E. de Podestá
publicado no livro Casas
A casa, numa visão da sua estrutura programática, é a “instituição” social que menos se modificou em todos os tempos. Sua estrutura foi suprimida ou reduzida em alguns tipos de função mas, mesmo com toda a tecnologia incorporada – eletrodomésticos, água, luz, telefonia, TV e internet, dentre outras -, permanece fundamentalmente a mesma.
A senzala diminuiu e virou DCE (dependência completa de empregadas); os banhos aumentaram quantitativamente, se interiorizaram e se particularizaram; a cozinha hoje, nem sempre é mais o coração da casa, mas está ali junto à senzala; o quintal, antes produtivo, virou jardim contemplativo; desaparece a sala de visita, tudo passa a ser visitado – eventualmente atrapalhando o horário da novela, a cômoda com o “lava-mãos” é substituída pelo lavabo e, inventa-se um local para o trabalho do ex-empregado (pomposamente chamado agora de autônomo), na garagem ou no quarto da bagunça. Novidades como o automóvel, ficam onde deveria estar o antigo estábulo.
No exterior é talvez onde iremos encontrar maiores modificações: a casa já não é no alinhamento, na rua, com suas janelas de ver passar; ganha um afastamento frontal, por força de lei, fortalece seus muros, acrescenta-se o interfone – não se bate mais palmas. O quintal, vira o lazer que ocupa o lugar do pomar, das criações, serviços gerais – agora é área da piscina, churrasqueira, pequenos jardins e, eventualmente um barracão com lavanderia, espaço para o hobby – marcenaria, pintura, cerâmica, etc. Poucas mudanças se imaginarmos o quanto a sociedade está mais complexa, mais ligada às transformações de todo o mundo e em todos seus aspectos.
O que diferencia uma casa da outra é a capacidade que o arquiteto tem de perceber nuanças, detalhes que identifiquem este grupo junto à sua comunidade, à sua cidade e, conseguir traduzir seus anseios espaciais, programáticos e estéticos.
Fundamenta-se nisto as diferenças, principalmente porque, como dizíamos, de forma bastante geral, as residências de hoje, contemporâneas, diferem pouco, no seu programa, das nossas antigas moradias.
Mas para a arquitetura e para os arquitetos este é e deve ser um grande laboratório de pesquisa onde é permitido caminhar pelo histórico, pelo social, pelas técnicas e com grandes possibilidades do jogo formal.
Neste tipo de projeto, além de uma proximidade viceral com este cliente é onde as informações cliente/arquiteto atingem uma dinâmica exclusiva, gerando para o arquiteto subsídios de todos os níveis, enfim, é onde o profissional, mesmo em pequena escala, exercita todas as relações que o discurso arquitetônico prevê: social, psicológico, amoroso, financeiro, urbano, formal, etc.
No seu livro “Casas en Venta”, (GG, Barcelona, 1981) B. J. Archer diz o seguinte:
Uma casa é, em primeiro lugar, um objeto geométrico de vazios e sólidos equilibrados se analisados racionalmente, mas é também um objeto que deveria conter metáforas que incluam o corpo humano e a alma.
A arquitetura da casa particular tem buscado a todo momento interpretar e dar forma ao sonho.
Charles Moore, arquiteto americano, escreveu que: “uma boa casa não só fala do material que está feita mas também dos ritmos intangíveis do espírito e dos sonhos da vida e das pessoas. Seu fragmento só é uma minúscula parcela do mundo real, mesmo que este lugar esteja feito para parecer um mundo inteiro”.
Na introdução do livro “3 Arquitetos”, capítulo Residências, de Éolo Maia, Jô Vasconcellos e Sylvio E. de Podestá, dizíamos: O ser humano possui uma necessidade primária de comer, fazer sexo e habitar. A habitação só satisfaz ao morador se o arquiteto, encarregado de proporcionar estes prazeres, conseguir interpretar as suas aspirações, suas necessidades físicas e psicológicas. Por isso as casas são diferentes. Por isso devem possuir personalidades diversas e adequadas aos moradores. Cabe ao arquiteto colocar frente ao morador espaços familiares às suas aspirações, cheios de surpresas e tranquilidade para que se possa ter maior consciência e amor ao espaço habitável.
É necessário que a casa fale com os seus habitantes. Daí ser também necessário que a casa transmita todas as mensagens diferenciadas a cada situação: alegres, sérias, comprometidas, irônicas, jovens, velhas, frívolas ou importantes.
A grande maioria das residências brasileiras é nostálgica, triste, massificada, deselegante. Na era dos computadores, deseja-se viver na casa dos avós. Esta nostalgia reflete o desvinculamento cultural com a contemporaneidade. A retomada dos reais anseios físicos e psicológicos é um passo para que a casa sirva às aspirações humanas e poéticas.
Verifica-se, então, que a grandeza da arquitetura reflete mais no poder de conceber “aquilo” que é casa, do que a habilidade em se “desenhar” uma casa.
A casa só é desenhada depois de concebida.
A expressão arquitetônica – e em projetos de casas ela é dramaticamente importante, laboratório, como já dissemos – é válida quando traduz ou antecipa a sua temporalidade. É uma expressão contínua. As terminologias passam, ficam para os críticos. A renovação constante do fazer a arquitetura é a sua essência e perenidade através dos tempos.
Se mudou tão pouco quanto ao programa, mudou muito formalmente, mas é importante salientar que o arquiteto que era conhecido por sua linguagem, por uma espécie de marca registrada simbolicamente representada por um enfoque formal contínuo, é vagarosamente substituído pelo arquiteto “tradutor”, que entende e incorpora as culturas regionais, particulares, técnicas e meio ambiente – que diz do sol, clima, paisagem, etc. – transformando o objeto arquitetônico em uma resposta específica, única, sem possibilidade de repetição literal, pois da viceridade, já destacada, na relação com o proprietário é impossível compartilha-la com outras situações que sejam tão similarmente específica.
É então um produto fortemente ligado ao universo do proprietário enquanto compreensão desta identidade traduzida agora para os princípio do lugar e sua cultura: topografia, métodos construtivos, história e contexto, estímulos visuais e sociais, custos, objeto que diz do seu tempo e dos seus habitantes.
Mas o que acontece então com as casas de praia dos mineiros, consagrados moradores da casas impares, receptivas, provocadoras, de plantas arquitetônicas bem elaboradas, historicistas (as vezes), vanguardistas (muitas vezes)?
No período de férias eles, os mineiros, em grande parcela, descem para o mar. Uns acampam, outros ficam em hotéis e pousadas. Mas é bastante comum grupos ou famílias alugarem casas, terem suas casas praianas ou conseguirem emprestada de um amigo ou conhecido e é deste grupo das casas que gostaríamos de tratar.
Não é raro, e já conhecemos esta história de nossas casas no sítio ou rancho de beira de rio, construirmos nossas moradias nestes locais de lazer – e no que nos interessa que são as “praias mineiras” – com sobras de reformas, janelas presenteadas, demolições ou basculantes encontrados ali mesmo no depósito da praia, o que não interfere substancialmente se os critérios para sua utilização contemplem este tipo de arranjo.
Mas não é isso que acontece. Da mesma forma que os materiais são improvisados, os projetos – e aí mora a tragédia – são realmente dramáticos. Esquece-se, a princípio, de se utilizar da sabedoria dos nativos que sabem dos sol, dos ventos e dos materiais. Transporta-se uma planta estereotipada do apartamento de 3 quartos da cidade, que por princípio não estimula em nada nenhum tipo de convívio e, preguiçosamente ou desinformadamente implanta-o em um lotinho de costa para o mar.
Depois de três ou quatro temporadas improvisadas, a casa está pronta. Primeiro passo para a próxima tragédia. Começa-se uma longa transferência de sofás velhos, cadeiras de várias épocas, quadros medonhos e talhas de madeira, panelas sem cabo e todo tipo de “objetos de decoração” sem uso aparente no apartamento da cidade. Pronto, está terminada a casa de praia mineira seja ela capixaba, baiana/sul ou carioca/norte.
Numa rápida descrição podemos dizer da sala quente e apertada com janelas para oeste e bancos de alvenaria com horrendas almofadas; quartos com camas também de alvenaria e armários improvisados; banheiros com “lindos azulejos decorados” e cozinha de apartamento com aquele fogão “que ainda está bonzinho”.
É fácil de compreender que muitas vezes não é possível fazer um grande investimento em um imóvel que será utilizado por pouco tempo durante o ano mas, é inconcebível passar férias, um período de descanso, em situação tão completamente precária.
Em um projeto de praia a funcionalidade – leia-se facilidade de limpeza e conservação; segurança quando fora de temporada e fechada, etc.- deve vir junto com o prazer de estar, do descanso, da contemplação, da reunião para o comer, para o baralho, o som, a dormidinha depois da caipirinha matinal. Isto se faz com grandes varandas, uma cozinha mais participativa, um estar sombreado e, se possível, com vista privilegiada, além dos quartos ventilados e com condições de resguardar o sono dos diversos guerreiros em suas diversas horas de chegar.
Varandas, muitas varandas. A das redes, do churrasco, da espreguiçadeira, com piso de cerâmica, lajotas ou mesmo um cimento bem desempenado e vez ou outra lavado ou encerado. O estar com vento cruzado, avarandado por todos os lados e junto, ali virando, a mesona de almoço e jantar e a cozinha, aquela comunitária, com balcão/bar e aberta as diversas manifestações dos mestres cucas e seus aprendizes (ver sugestão do Mestre Veveco na Palavra 1). Um barrado de azulejo, um piso fácil de lavar e uma grande despensa para talheres, pratos panelas e, claro, o freeser ou geladeira (por favor, não aquele todo enferrujado e que dá choque). Um tanque lá fora, numa coberta simples, para as pequenas lavagens de roupa – se necessário – e para as milhares de fraldas dos netos porque volta e meia as descartáveis assam naquela mistura de areia e sal.
Os quartos. Estes, sempre terríveis, podem ser aprazíveis cuidando-se da ventilação – como toda a casa – e dos pernilongos. Possibilidade de escurecimento é fundamental como também o piso frio, cerâmico ou cimentado. Aquela cama de alvenaria pode permanecer mas com o cuidado da proporção (altura e larguras) e também construída de tal forma que o colchão segure o lençol e não fique zanzando prá lá e prá cá. O guarda roupa pode ser simples, cabideiro e poucas gavetas mas é preferível uma pequena rouparia que é também depósito de travesseiros, do colchãozinho para o amiguinho de última hora e que tenha uma porta para que se evite a poeira e a visão da inevitável bagunça.
Sobrou o banheiro, cheio de biquínis e calções pendurados, areia no box e no sabão e papel molhado no chão. Água fria ou quentíssima em pingos gigantes. Um pequeno cuidado com a caixa d’água no seu volume e na sua altura – para a pressão da água – não é nada complicado e o resultado dos mais agradáveis. Um piso com bom caimento e um ralo um pouco maior provavelmente vai evitar empoçamento e a danada da areia. Quanto aos biquínis e calções, educação e um varal em lugar apropriado.
Está quase pronta nossa casa de praia. A pintura deve ser alegre e de boa qualidade para que não descasque como provavelmente seus moradores vão estar depois da primeira semana de sol. As esquadrias, preferencialmente de madeira ou alumínio para evitar ferrugens e, vidros não muito grandes para facilitar a limpeza da maresia.
O cardápio, o mais variado possível, mas caprichem mesmo que seja macarrão que bem feito é prato para ninguém botar defeito. Para quem não sabe cozinhar, recomendamos o vermelho (peixe, com 3 Kg), com escamas, assado em forno ou churrasqueira (sem tempero) por uma meia hora. Verifique o ponto levantando a pele, a carne sempre muito branca, deve estar tenra como uma mousse. Derreta um pacote de manteiga com sal numa panela e um vidro de alcaparras (escorrida). Coma até a bandeja onde foi servida ficar pronta para a entrada do Mandachuva (aquele gato) e sua turma.
Agora, para projetar sua casa, um gourmet arquiteto ou um nativo para que não se desça mais às praias como seguidores apenas do Flautista. Aquele.
*Texto foi parcialmente publicado no jornal Tribuna das Gerais, Vespasiano/MG e faz parte do livro “Sylvio E. de Podestá – CASAS”, AP Cultural.