1988/89: Casa Mário, Adelaide e meninas

Local: Bairro Santa Lúcia, Belo Horizonte, MG
Projeto: 1988/89
Construção: 1989
Área terreno:
395,00 m2
Área:
340,00 m2

A grande inclinação do terreno no sentido rua/fundo 49% sugeriu ocupação vertical e invertida, ou seja: o teto é ocupado pela garagem e, na sequência, estar/cozinha, íntimo e lazer/serviço abrindo para a piscina e quintal.

Uma grande crista amarela reforça o eixo de circulação e caracteriza a entrada principal, servindo de apoio para duas coberturas metálicas com desenho de treliças (não literalmente resultado do cálculo estrutural) que, escalonadas, recebem ao norte coletores solares. A vedação em tijolos laminados e requeimados cobrem também a estrutura que ancora a casa no barranco. Contém aberturas feitas a partir da visão que se deseja quando se ocupa ambientes distintos, estando o observador sentado ou em pé. Balcões laterais, mirantes, foram colocados nas duas grandes frestas verticais e simétricas interferindo, junto com o rasgo central da escada, no volume em meio cilindro da residência suavizando sua massa potentosa.

Grades sobrepostas a esquadrias convencionais enriquecem o seu desenho e dão proteção às aberturas.
Os arrimos se sucedem em degraus, evitando cortes e grandes estruturas, assentando a construção e formando os platôs da piscina e quintal de acordo com o perfil topográfico.
É dali que a família descortina Belo Horizonte com vista deslumbrante. (Memorial descritivo para premiação do IAB/RJ.)

Diz minha mãe, goiana, que lote desse tipo nem dado. Esse é um dos desafios de projetar em BH e, especificamente, em alguns bairros de topografia inaceitável para outros locais, como é o caso de Goiás. Aqui se mora pendurado ou pra cima ou pra baixo. O terreno onde se construiu esta residência tem frente de 15 metros e profundidade média de 26,5 metros e um declive de 13, o que realmente assusta qualquer boa mãe goiana mas assusta também, e principalmente, alguns arquitetos que negam topografias semelhantes, “reconstroem” o terreno, criam plataformas inconcebíveis, para só então executam seus desenhos.

Os proprietários compartilhavam desse ponto de vista crítico e, prontamente, aceitaram a proposta de ocupação “espacial” do terreno; assim, elaboramos uma distribuição vertical do programa.

O programa é de uma casa convencional apenas com o escritório de psicodrama como elemento diferencial e se distribui, verticalmente, da seguinte forma:

a. Nível 0,00: garagens, acessos, depósitos, gás e mirante. Acima, cobertura metálica com coletores solares e caixas d’água;
b. Nível -2,80m: escritório de psicodrama, estar, refeições, cozinha, pequeno serviço, despensa, bar e balcões;
c. Nível -5,60m: estar/TV, quartos meninas, banheiro, rouparia, quarto casal/vestir/banheiro e balcões;
d. Nível -8,40m: serviço, quartos empregadas, banheiro/vestiário, costura, estar/lazer, deck piscina e piscina;
e. Nível -11,00m: horta e pomar, casa de máquinas da piscina.

O sistema construtivo utilizado se realiza em estrutura em concreto armado com vedações e revestimentos em tijolo requeimado. Entendemos primeiro a encosta com sua declividade, sua vistas e insolações. Propusemos cortes escalonados, patamares, que definiram as áreas de cada nível e evitaram grandes e custosos arrimos. Através do seu vazio central, onde se localizam os acessos verticais principais, duas vigas acompanham a declividade do terreno, ancoram todos níveis a blocos localizados no alinhamento, na parte superior do lote. O procedimento foi adotado como segurança para um solo composto por filito, com placas posicionadas em sentido desfavorável e sujeitas a possíveis deslizamentos. Arrimos de blocos de concreto permitem, a baixo custo, a formação dos platôs da piscina/deck e do pomar/horta.

Aproveitando texto de Barchelard (“A Poética do Espaço”, gentilmente cedido por Almandrade), e encerrada a parte descritiva do projeto, vêm os sentimentos não explicitados até aqui: os devaneios. Procuramos oferecer também a possibilidade de estabelecer um “lugar” para os proprietários dessa casa, de forma que pudessem transformá-la em “um grande berço”, um local onde deveriam se sentir bem, “estar-bem”, onde se preparam cotidianamente para se lançarem ao mundo. É o local onde passarão a guardar suas lembranças. Como diz Bachelard (e mesmo sabendo que em nosso caso a relação está invertida), “se a casa se complica um pouco, se tem porão e sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais caracterizados. Voltamos a eles durante toda nossa vida em nossos devaneios”.

O diferencial anti-barchelardiano desta casa é sua inversão vertical. Quando diz que a verticalidade é assegurada pela polaridade do porão e do sótão, da oposição da racionalidade do telhado à irracionalidade do porão e que todos os pensamentos se ligam claramente ao telhado pontiagudo que corta as nuvens, abrimos aqui a possibilidade de uma outra poética, a “só do porão”, onde “o habitante apaixonado o aprofunda cada vez mais, tornando-lhe ativa a profundidade”. Some a polarização estereótipo casa porão/sótão e surge a casa terra/paisagem, terra/espaço vazio, formada por uma idéia de recomposição da topografia, redesenho do perfil em declive do terreno.

Abaixo da rua, tem em suas costas a matéria contida da encosta e, à sua frente, o infinito da paisagem. E é dessa possibilidade de visão que seus habitantes percebem o nascimento do sol e da lua, a chegada da chuva e voltam, como antes, a dominar as manifestações que vêem do céu daí suas aberturas contidas ou localizadas de forma a proteger, sem esconder, sem perder a intimidade de quem está em um “porão” tão diferente. “Está solidária com a montanha e as águas que trabalham a terra”. Se é só porão, então “…descêmo-lo sempre. É a sua descida que fixamos em nossas lembranças, é a descida que caracteriza o seu onirismo”.

Finalmente, uma dedicatória: a residência do Mário, da Adelaide e das meninas, é um projeto conjunto de quem aceitou e compreendeu a montanha. As meninas chamam a casa de “Observatório”. E é mesmo. Dali se tem vista larga, um céu terrestre que é a cidade lá embaixo e um céu celeste quando chega a noite. Uma casa para quem um dia emprestou um paletó para alguém morto de frio e lhe deu a chance de sonhar.

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