Desenhando
Minha mãe desenhava, bordava, tirava molde com carbono, lápis e réguas. Meu avô desenhava fazendas, limites, lotes com pontas finas de tira-linhas e curvas francesas, pantógrafos e normógrafos e eu, morrendo de inveja comecei a desenhar nos cadernos, paredes, chão molhado e finca, muros mofados. Tinha amigos que desenhavam quadrinhos de guerra, aviões e tanques, soldados e mulheres peladas. Desenhei também minhas mulheres peladas, mas também uns plásticos para vidros de carros com ilustrações de mustangues e hot rod e vendia para os boys motorizados. Fiz curso de desenho mecânico por correspondência e aprendi desenho técnico. Fui embora para BH fazer engenharia porque quem desenhava era da área técnica (descobri muito depois que o desenho na botânica, medicina e etc. é tão importante quanto na técnica). Passei fácil pelas materinhas da engenharia. Mudei de curso e fui parar na arquitetura e em matérias como desenho artístico e história da arte e aprendi a trabalhar com guache o que me salvou da dureza total pois trocava placas de lanchonete (misto quente, coxinha e etc..) pelos produtos do lugar e economizava no rango nos fins de semana que não tinham restaurantes universitários. Logo no primeiro ano de arquitetura aprendi desenhar com a Bic preta ponta fina, uma espécie de bico de pena alternativo e fiz uns bons desenhos quando passei pela Mesopotâmia (via livro é claro!). Durante muito tempo também sobrevivi e bem fazendo perspectivas de projetos de outros arquitetos. Tempos depois era chamado para cursos de desenho em várias partes do Brasil. Já conhecia muito de arte, de arquitetos outros e suas formas de abordagem dos projetos através de mil ferramentas, dentre elas o desenho. Vi Frank L. Wright com suas influências japonesas em relação ao observador, Kahn com seu instigante carvão. Mendelson e suas rápidas pinceladas e milhares outros.
Chamado então para um evento em João Pessoa que sempre vinha em seguida a um encontro em Terezinha, Fecon, que foi muito importante na minha vida, me deparo com ilustres personagens e eu, convidado para fechar o evento quando um destes convidados e ótimo desenhista (tenho um livro dele onde seus desenhos se intercalam a textos de Pessoa) o arquiteto Álvaro Siza se hospeda no mesmo hotel que eu e como eu também desde o primeiro dia, estava ali para receber um título de doutor honoris causa junto com Niemeyer, este via vídeo conferência.
Ficamos então convivendo por uma semana, ele fumando e contando caso e desenhando e eu ouvindo.
Ele fez uma palestra brilhante sobre um só projeto, a Igreja de Marco Carnaveses, diz da janela lateral para ver os campos ao lado, da escadinha interna para limpar as janelas lá do alto e a colocação dos santos no chão, junto as pessoas e não lá no alto tentado nos esmagar. Também de uma longa porta que a certa hora, aberta, deixa o sol entrar exatamente marcando o corredor central. Como fuma muito, projetou um velório na parte inferior com chance dos fumantes se encontrarem. Mil coisas e um só projeto. É assim que deve ser, o seu único projeto deve conter o universo.
Em um dos intervalos do encontro faço um dos tradicionais passeios de João Pessoa que é ir ver o por do sol ouvindo o bolero de Ravel no bar do Jacaré, no rio Sanhauá e como chegamos cedo, levado por vários amigos arquitetos, suas esposas e filhotes ainda pequenos, estes ficaram sem o que fazer, esperando algo que não era exatamente uma novidade, incomodados.
Chamei a turma, juntamos umas mesas e com guardanapos, mostardas, ketchup e molho inglês ensinei a meninada a desenhar o pôr do sol sendo mostarda e ketchup para o céu e o sol e o molho inglês para o mangue e rio. Os desenhos ficaram lindos.
Depois de tanto tempo insistindo ficava ali a confirmação de que o desenho pode ser feito por qualquer tipo de ferramenta, qualquer suporte, qualquer pessoa desde que mostre uma intenção, que represente um pensamento, um momento, uma prospecção futura dentre mil coisas outras.
Cunhei uma frase que repito a toda hora que laptop ou notebook de arquiteto é guardanapo de botequim.
Incorporei definitivamente o vasilhame da mostarda como pincel, como um ótimo instrumento para desenhar e desenhar o que se está pensado pois ele necessita rapidez a partir de uma preconcepção. Alguns resultados são surpreendentes, longe claro de um Amilcar de Castro que desenhava com grandes brochas, vassouras e até maçarico ou minha sogra a Ninya que alguns anos atrás virou borboleta. Ela desenhava com pedacinhos de papel. Muito lindo.
Desenhar é bom, é ótimo!
Podestá, que boas lembranças vieram na memória ao ler este texto!
Hoje meus filhos, Vitor e Mariana, que participaram desta aula de desenho, também são arquitetos.
Boas influências!
Grande abraço.