Entrevista com Amelia Panet

Entrevista com o arquiteto Sylvio de Podestá realizada pela arquiteta Amélia Panet, na qual discutem sobre a trajetória pessoal do arquiteto e sua formação em arquitetura. Publicada no Livro Projetos Institucionais, AP Cultural, 2001)

João Pessoa, quarta-feira, 28 de março de 2001, 16:49.

Amélia Panet – Fale um pouco sobre a sua família, sua infância, seus pais e qual a importância deles para a sua escolha profissional.

Sou filho de filho de italiano com filha de filho de alemão, um mineiro do Sul de Minas que encontrou uma goiana lá no interior de Goiás, caminho de Mato Grosso. Ele era um jovem, como todos na época, doido para ir para o Rio, namorar, jogar futebol, etc. Quando ele começou a aprontar, um tio lhe conseguiu uma nomeação para o Banco do Brasil. Mas achando que ia arrumar um cargo de funcionário no Rio, foi mandado para Goiás.

Lá, acabou conhecendo meus tios na noite, naquelas festas, nos forrós de lá, e acabou encontrando minha mãe. Casaram e nessa vida de bancário, no começo em Rio Verde, logo depois, mudanças. Parece que existia naquela época uma espécie de rodízio, quando uma agência ia ser aberta ou reformulada, chamavam um grupo de outro lugar, para estruturá-la.

Morei então em vários lugares e esta coisa de ser meio viajante acho que começa aí. Um dia nos estabilizamos em Anápolis, eu estava com uns 10 anos. Não existia ainda Brasília. Anápolis era uma cidade bastante progressista, perto da novíssima capital do estado, Goiânia, uma cidade projetada, baseada nos planos de Belo Horizonte. Neste ambiente, de uma hora para outra, começam a chegar vagões imensos, com milhões de perfis metálicos e tudo quanto é tipo de material de construção que você possa imaginar e, em quatro anos, a gente viu Brasília nascer.

Só sei que, em 60, eu estava participando daquela folia toda. Poeira, gente chegando do Nordeste, do Sul, um de bicicleta, outro a pé, fazendo peregrinação para a nova cidade, com as idéias de Juscelino de explodir o interior do país, levar o brasileiro para todos os lugares. Mas até aí, não tinha nada haver com arquitetura. A única coisa que eu conhecia de profissão eram as tradicionais engenharia, medicina, advocacia e, mais ligado à área técnica, pensei em ser engenheiro.

Em BH existia um colégio de pesquisa pedagógica. Tais pesquisas seriam aplicadas na universidade, diziam. Me inscrevi, tentei, passei raspando, um dos últimos, e descobri um outro mundo. Vim de uma escola americana, que tinha processo de ensino avançado, teatro, música… Estudei nove anos de piano, literatura, datilografia, o que pude fazer na época eu fiz. O ensino desse Colégio Universitário era completamente diferente, eu tive uma outra visão de como se pode aprender as coisas, através do contato com laboratórios e todo esse universo. Fiz vestibular para engenharia, fiz em Brasília primeiro, fiz no ITA…

Panet – Engenharia também?

Engenharia Mecânica, lá e na federal de Minas. Não quis ficar em Brasília. Era uma boa universidade, o Darcy Ribeiro estava lá, todo mundo, só que nesse período, 1970, início da famigerada era Médici, tinham literalmente detonado a Universidade. Eu lembro muito bem o que saiu em um jornal da época – como o De Fato, Opinião, jornais de resistência – era uma ilustração de uma porta com um pé, a marca de um bate-bute de milico que a tinha demolido, que foi o símbolo da destruição da Universidade de Brasília. Todo mundo se dispersou, então mesmo passando lá, fui para Belo Horizonte.

Fiz dois anos e meio de engenharia, com algumas coisas muito boas. Aprendi muito no laboratório de hidráulica, as químicas de proteção das estruturas, mas outras coisas se tornaram chatíssimas, era uma longa caminhada e você não via ali nenhuma forma de ir incorporando emoções, a gente não sentia isso na época. Aproveitei um mecanismo que se chamava re-opção: tinha um amigo que estava fazendo arquitetura, que achava todo mundo alienado e eu querendo fazer algo alienante, trocamos de lugar.

Naquela transposição das matérias, só consegui fazer uma que era do primeiro ano, de composição tridimensional, desenho artístico, esse troço. Tinha de ser feita antes das outras e eu fiquei um ano tendo aula só um dia por semana. Aproveitei então para viajar, peguei uma mochila e, durante dois anos e meio, viajei de carona, conheci o Brasil inteiro. Depois fiz essa mesma viagem de carro.

Panet – Isso foi em que ano?

Em 72, 73. Na época era menos sindromático essa coisa de pegar carona, ninguém tinha medo e eram umas viagens muito agradáveis, sempre trocando as pessoas, conhecendo outros lugares, essa coisa me atraiu.

Continuando, entrei no curso normalmente, mas logo montei um escritório, em 74, de apresentação de projetos. Eu via o seguinte: a gente ouvia reclamações das pessoas recém formadas de que elas eram aviltadas, logo nos primeiros anos, com pagamento aquém das tabelas. Elas acabavam entrando numa roda viva danada e não conseguiam depois suportar a pressão de tentar manter um escritório, a qualidade de vida que tinham estabelecido, faziam quinhentos mil projetos mal pagos, sem as devidas condições, sem as informações necessárias.

Precisava arrumar um jeito para que isso não acontecesse. Então montei uma firma, também, de desenvolvimento de projetos, de aprovação de projetos na prefeitura. Desenhava, levava para a prefeitura, fazia perspectivas dessas que agente vê no computador para vender prédios. Apresentação de projeto era muito bem paga na época e eu conseguia manter um patamar bem alto de faturamento. Assim, fazia só os projetos que queria. Tinha todo o tempo do mundo ou pra discutir ou pra pegar os projetos que me interessavam.

Durante algum tempo, talvez até 86, eu já estava com um escritório com o Éolo (Maia) e ainda fazia esse tipo de coisa. Era como se fosse uma firma em paralelo, que me permitia comprar todos os livros de arte, de literatura, de design, e fazer as viagens que quisesse, tanto é que eu conheci a Gaby no México e um pouco depois a encontrei em Paris, onde ela estava com o Grupo Corpo e eu com uma namorada passeando pelo mundo afora. Acabei a conhecendo e inverteram-se os papéis, preferimos ficar juntos.

Eu já tinha um escritório onde também trabalhava um designer e essa troca era muito boa, então montamos o primeiro escritório que eu tive notícia na época onde o cliente podia participar da produção. Era um grande salão, sem nenhuma divisória, com todas as pranchetas ali, estagiários junto com todos os profissionais, e o cliente podia chegar lá, olhar todo o processo. Ele entrava no escritório e já estava vendo o detalhamento, os materiais a serem utilizados, vendo quem estava fazendo o desenho x, y… Ele acompanhava, entrava ali e saía com a maior cara de pau.

Ali aprendi a trabalhar numa espécie de abstração e hoje consigo trabalhar em qualquer lugar, dentro de um caminhão, fora, com quinhentas pessoas em cima de mim, sem nenhuma pessoa perto. Eu não tenho chatura nenhuma pelo lugar e também consigo trabalhar com todos os tipos de pessoas. Você pode ver nos meus projetos que poucos são feitos individualmente. A idéia é que, podendo fazer essa troca, esse vai e vem, você não é sempre juiz de si mesmo. Tem sempre alguém que possa acrescentar alguma coisa ou pedir para baixar um pouco a bola, não viajar tanto. Por isso geramos revistas, estávamos junto a um designer gráfico que tinha e repassava informações outras, não só metragem, altura, faturamento…

O arquiteto tinha vergonha de falar quanto estava ganhando, nunca tivemos, mas também nunca colocamos isso como primordial. Nesse período, me identifiquei muito com o que o Éolo vinha fazendo. Ele trabalhava muito em cima dos princípios de Kahn, até estruturalmente as coisas eram muito parecidas, e eu, no começo da década de 80, montei escritório com Éolo e trabalhamos juntos até 88.

Panet – O que pude observar na sua exposição de sábado é que seus projetos refletem muito seu espírito, sua liberdade de viver, pensar, falar e agir. São bem humorados e provocadores. Sua arquitetura procura mostrar o tempo e os conflitos da época, a complexidade e a contradição, como diz o outro. Você disse que já sofreu muitas críticas com relação a aceitação de algumas de suas propostas, o que você me diz de tudo isso

A questão do bom humor acho que é primordial, imagine você escolher uma profissão que tem tantas formas de trabalhar e ser logo mau humorado. Como arquiteto, você pode ser músico, ser artista, paisagista, sociólogo de cidade, urbanista… É uma gama fantástica, ninguém tem que ficar reclamando. Agora fazer isso tudo sem humor, sem estar feliz, deve ser uma tragédia genial. São duas tragédias: a sua própria, enquanto está fazendo um trabalho sem nenhuma curtição, sem nenhuma paixão, e a do outro, que recebe esse trabalho. Se você não tem humor, provavelmente vai repetir alguma fórmula que tecnicamente seja mais fácil de ver e nunca mais vai ter surpresas. É ele que te ajuda a incorporar outras leituras ou releituras ao que está fazendo, senão, cara, por mais artista que seja, passa a ser técnico. Acredito que a arquitetura só é produzida a partir de uma intenção, ela não é leiga, é preconcebida a partir de conhecimentos e muitos deles bastantes específicos. Só acredito nela leiga por um acaso, porque conseguiu-se de alguma forma incorporar alguns princípios que mesuram um projeto de arquitetura.

Quanto a essa questão de ser ou não questionador, de ser contraditório ou não, acho que faz parte da própria história da nossa geração. Nós somos de setenta, dizem que foi a década perdida, alguns falam que 80 também, mas acho que 40/50 foi a grande passagem da arquitetura brasileira de um estágio para outro já que, com o modernismo, ela se libertou teoricamente de um passado. Mas como aqui ele chegou bem mais tarde que em qualquer outro lugar, pôde ser feito com uma certa galhardia. Temos arquitetos bastante reconhecidos deste período.

Só que depois, caiu-se nessa mesmice, eu chamo de mediocridade mesmo, as pessoas pararam, esqueceram que poderiam está dando continuidade a outras formas de pensamento. Então houve uma ruptura no fim de 50 começo de 60, mesmo em 70, que foi muito complicada. Eles se recusavam a discutir outro tipo de coisa que não fosse aquela velha fórmula de se fazer arquitetura com o concreto protendido, uma caixa d´água como composição vertical, estruturas de concreto com os pilares salientes, muito vidro e coisa e tal.

Nós resolvemos questionar isso de alguma forma e por isso fomos chamado de pós-modernos. Sabíamos que a pós-modernidade era uma passagem, mas eu não sabia o tamanho da transitoriedade. Era o momento para repensar uma arquitetura que estava muito pior, a nível de dogmas, do que a moderna. Já tinham eliminado metade do patrimônio histórico brasileiro, o que chamávamos de arquitetra de terras devassadas, independente da qualidade do que estava sendo inserido. A partir daí, poderíamos repensar essas coisas e incorporar outros valores. Sempre dou como exemplo a culinária: faça como a culinária brasileira, feita quase sempre de misturas, de vários sabores, várias texturas. Não comemos apenas um franguinho com uma batatinha. Comemos um frango com banana frita, mandioca, arroz com alho, pimenta, um tomate e vai por aí. E era isso que estávamos precisando fazer de todas as formas possíveis, como se fôssemos gangsters de metralhadora dando tiros a revelia. Precisávamos botar pra fora toda a sofreguidão de tentar fazer uma coisa que pudesse incorporar as culturas não só do nosso lugar, mas de todos os lugares e cidades por onde passamos, com um olhar crítico, que procurasse passar um pouco do que havíamos aprendido com outras pessoas, era este tipo de vida e de arquitetura que queria fazer.

A partir daí, essa arquitetura passa a ser divulgada, passamos a ser solicitados a conversar sobre ela. Os professores da época, ficaram um pouco com raiva, por que normalmente eram os estudantes que nos convidavam para as semanas de arquitetura ou mesmo como patrono. A Mackenzie, de São Paulo, que foi a escola da direita na época de 60/70, de onde saíram as posições mais reacionários do Brasil, de uma hora pra outra passa a incorporar uma outra forma de fazer arquitetura e uma das turmas, que hoje tem grandes arquitetos como por exemplo o Mário Bizelli, me chama como patrono. É, fui gozado como “o pós-moderno mineiro” e tal, tive que dar umas sentadas em algumas pessoas que se apresentavam como ex-exilados e não sei o quê, professores de Sorbonne, Harvard, e que me apresentaram assim: “aqui ao lado o arquiteto mineiro, representante do pós-modernismo local”, numa espécie de sarcasmo, em cima disso falei: “ah! É, eu não tenho nada a perder, quem tem são vocês que dão aula, que vão se passar por pessoas retrógradas que não conseguem incorporar um outro discurso que não seja o seu próprio parecendo um aposentado que se recusa a aceitar o controle remoto de uma televisão ou um banco automático, ou qualquer outro tipo de coisa sem tentar pelo menos incorporar isso na sua vida”. Depois desse discurso, foram me pedir desculpas e percebi que eles achavam que fazíamos um risco, um traço, e que por trás disso não existia uma leitura, nenhum conhecimento, e se assustaram quando viram que o quê eles sabiam a gente sabia também, pela idade, talvez soubessem um pouco mais. Mas saber um pouco mais ali não era ter lido mais livros, era ter liberdade de dar um passo a frente, rediscutir, rever.

Foi na década de 80 que realmente explodimos para todos os para lados, colocamos um novo discurso. No fim de 80, me separei do Éolo (Maia), que era considerado o grande guru da época por aglutinar várias vertentes, e segui para outros tipos de sociedade, passei a trabalhar uma coisa um pouco mais silenciosa. Quando trabalhava com o Éolo, ela era mais ruidosa, quando eu trabalhava com o Saul (Vilela) era outro tipo. Quando você trabalha com uma outro pessoa, o que interessa é que o resultado seja uma mistura. Numa mesma época, um projeto feito sozinho, um projeto com o Éolo ou um projeto com o Saul tinham diferenças, já que você estava trabalhando com uma somatória desses enfoques.

Panet – Essa sua proximidade com o Éolo, foi ainda na escola, você como aluno… Ele é mais velho que você não é?

Exatamente dez anos a mais que eu.

Panet – De que forma se deu essa aproximação, essa identificação com o Éolo Maia?

Influenciar ele não me influenciou, por que eu nem o conhecia direito. Ele já tinha muita coisa feita mas, não era exatamente o que eu estava pensando em fazer, de jeito nenhum. Podemos dizer que foi partir da construção dessas revistas, dessas publicações, das nossas exposições, que a gente se conheceu realmente. Ele sempre foi também um grande desenhista, a nossa arquitetura surgia da capacidade de se expressar através desse tipo de ferramenta. Ele gostava muito de escrever, eu também gosto, acho que o arquiteto tem que saber contar o que está fazendo em texto e foi um “vamos trabalhar juntos” num estalo, provavelmente numa noite de boemia.

Não sei se ele se arrependeu depois, mas eu sei que ficamos oito anos “casados”. Realmente foi um casamento efetivo: trabalhávamos praticamente todos os projetos juntos, entramos em todos os concursos, saíamos quase todas as noites, tudo durante esses oitos anos foi muito intenso. Por exemplo, logo que montamos escritório, participamos de 16 concursos no mesmo ano. Eram propostas para modificação da rede de grupos escolares de Minas, ganhamos quatro e três menções, arrasamos na época. Por que? Porque incorporamos para cada lugar – e Minas são muitas, já dizia o poeta – um pouco da cultura deste lugar. Chegamos ao ponto de resgatar do norte de Minas uma arquitetura onde a gente revia o desenho da platibanda, que todo mundo conhece mesmo aqui no interior, que são aquelas casinhas de porta e janela, cada uma com um desenhando a sua platibanda. Propusemos isto para alguns grupos, deixando essa parte ser acabada pelos pedreiros de cada lugar, de cada cidade, de forma que se inserisse na urbanidade daquela aldeiazinha ou cidadezinha a leitura que eles mesmo tinham dela, uma forma de carinho, uma troca.

Logo depois fizemos uma casa, a casa Hélio e Joana, onde resgatamos o telhadinho de duas águas, escondido numa platibanda com outra leitura, um grande arco. Nela também, brigamos contra uma coisa que na escola a gente aprende como padrão: “a circulação está muito grande, faça-a menor, é perda de espaço”. Então a circulação da casa foi projetada imensa. É um grande túnel que vai do portão de entrada ao último quarto, e faz, como uma galeria, a distribuição para os outros espaços. Por que me encheram o saco a vida inteira para fazer a menor circulação se eu poderia também fazer uma imensa e tirar dela um grande partido?

Isso é uma sacanagem e por isso acho que os professores têm que ser cada vez mais abertos, dizer que se existem essas duas possibilidades que elas sejam colocadas. Eram essas as dificuldades que eu tinha nos primeiros anos de escola. Fiquei treze anos na escola, na hora que eu via que o professor não estava caminhando bem, eu dizia: “volto no semestre que vem e espero que não seja o senhor nesta mesma turma”. Criei grandes inimizades e imensas amizades por essa postura, era ótimo. Como eu já tinha dez anos de escola, já estava no mercado e alguns professores tinham sido meus colegas, então as aulas começaram a ser debatidas no mesmo nível, já não era o professor-sábio, em cima de um “tabloidinho” de 20 cm, e um aluno sentado lá atrás todo recolhido. Era um cara que encarava de frente, com o mesmo grau de conhecimento, o professor que estava fazendo uma bobagem. Na época eu escrevi um negócio que se chamava Panfletinho Terrorista – como testar seu professor em qualquer tipo de discussão e tinha como princípio, para qualquer tipo de coisa que ele falasse na sala, perguntar o que era o significado. Quando ele dizia: “Porque quando encaramos frontalmente…” “Professor o que é encarar? O que é frontalmente?” De forma que todas as coisas que fossem ditas, tivessem o pé-no-chão, não simplesmente pegar e ler a frase do dia, sem explicar item por item. Criou-se com isso uma coisa complicadíssima e alguns caras se horrorizaram com isso. Outros diziam: “Então, tudo bem. Toda hora que tiver alguma dificuldade desse porte, vocês se reportem ao Sylvio que eu acabo de transformá-lo em meu auxiliar”. Tudo bem, desde que divida comigo o seu salário. (Sorrisos).

Essa parte da escola foi muito legal e, quando eu saí, a turma que estava formando nem me conhecia, nunca tinha aparecido na turma deles, fazia só uma matéria optativa que era obrigado a fazer (optativa mas obrigado), e uma grande professora, a Suzy de Melo, começou seu discurso de paraninfa assim: “Hoje temos aqui duas grandes alegrias, uma essa turma linda e bonita, se formando, começando uma nova vida e outra, finalmente o Sylvio deixando a escola”. Isso era muito gostoso, marcou muito a trajetória da gente, um pouquinho de rebeldia foi o que nos aproximou de outros grupos, dentre eles a turma de artes que também estava começando, a de dança, de literatura, os músicos. Era com estas pessoas que sentávamos para tomar uma cerveja e conversar sobre os nossos negócios, sonhos e tudo mais. Ao mesmo tempo, quando um se destacava pela qualidade, forçava o outro a ir além. Não uma cobrança literal, mas se meus amigos estão fazendo essa obra genial, se são músicos, se estão dançando, estão cada vez mais fantásticos, eu tenho que correr atrás, não vou ficar para trás, senão não sento mais na mesma mesa, ou não durmo tranqüilo. E aí nós corremos por fora, fizemos o máximo possível para chegar nesse ponto, uma coisa que deve ser lida como procura, como vontade de fazer algo que incorpore outros valores que não sejam só os tradicionais.

Panet – Eu vejo pelos menos dois momentos bem definidos na sua produção, que eu poderia arriscar me a dividir por décadas – década de 80 e década de 90. Dividindo-os desta forma não os priva de uma continuidade, apenas gostaria de discutir algumas questões, uma deles abordada por Ernani quando comentou sobre a liberdade de sua obra, da abertura e do acolhimento que ela possui em relação as influências temporais, do momento que ela é criada. É possível notar um reflexo muito forte em sua obra, de tudo o que se discutiu aqui no Brasil, sobre o pós-modernismo na década de 70 e principalmente 80. Toda aquela abertura para as cores fortes e variadas, a volumetria provocadora, uma volta à alguns elementos do passado. Podemos ver também uma penetração da luz na sua arquitetura, como os vitrais góticos, ou um pouco das aberturas da obra do artista plástico Lúcio Fontana. Já na década de 90 percebe-se uma aliança, uma nova procura, uma proximidade com a arquitetura mundial, globalizada, isto bem traduzida à cultura de sua região. Sentimos também o apoio da Usiminas e a flexibilidade que o aço confere às obras. Gostaria que você discutisse um pouco isto.

Hoje, e confirmado pelo Congresso de Barcelona, pinta uma nova onda, uma nova postura, algo como “ver através de” e por isso toda essa transparência que as pessoas estão procurando, e aí, por exemplo, a estrutura metálica entra para ajudar nesse trabalho, massa e transparência. É muito difícil trabalhar a transparência com a massa, o vazado – por mais que você possa usar pérgolas, vazios, como eu já tinha usado naquelas casas de Rio Verde, uma grelha vermelha, outra um cubo azul – é transparência, mas ainda tem uma massa que o/a segura. Esse cubo, por exemplo, é virtual, mas muito pesado, você sente uma proteção, uma vibração forte, é diferente de colocar quatro perfis de alumínio. Poder, como agora, ter nas mãos materiais de ponta, como o aço e o vidro, poder utilizá-los e incorporar à sua arquitetura também essa transparência, se em algum momento ela exigir, sugere que você trabalhe a luz, porque a luz vai entrar brava, não vai entrar como em casas de pequenas aberturas, com grandes avarandados.

Essa luz vai ter que ser recebida no momento adequado, porque ela vai vir forte, nossa luz é forte, e tem que ser protegida nos momentos adequados. Você abre para uma paisagem, mas essa paisagem é vista, com sol ou sem sol, através do vidro ou de um terraço. Isso, mais uma vez, faz você se lembrar que desde os primeiros momentos já tinha que ter compreendido o astro rei com muita veemência, tanto pra respeitar a luz, quanto pra respeitar a forma como ele pode estar incorporando outras tecnologias à sua arquitetura, ecologicamente, como os coletores solares e tudo mais. Mas também as luminárias melhoraram qualitativamente. Hoje temos formas de iluminar o lugar noturnamente com a mesma galhardia. Você passa a viver bem a noite, como quando puseram o primeiro candeeiro na rua e a cidade passou a ser visitada a noite. A casa, ou o prédio, ou a praia, passam a ter mais tempo de uso, para podermos admirá-los, usufruir de mais essa incorporação de efeitos luminotécnicos controlando suas várias formas, pelo computador, pela cor, de sua incidência. Apresenta-se com muita força o parceiro luminotécnico como já acontecia com o engenheiro hidráulico e elétrico, o paisagista. Os prédios públicos passaram a ser iluminados, para serem valorizados e visitados à noite. Todos esses elementos fazem parte da formação e acrescentam uma outra forma de fazer arquitetura, como vimos acontecer muito na década de 70. Você recebe isso com muita alegria e vamos tocar pra frente. Acho que na passagem de oitenta para noventa, recebemos outros fluidos, outras coisas que apareceram. Para 2000 em diante, vamos conviver, sem sombra de dúvidas, com processos pelos menos semi industrializado. Trabalhar a partir de uma oficina de montagem, de forma menos artesanal, para que possamos fazer uma arquitetura mais operacional, que consiga ser implantada com mais rapidez, eficiência e garantia de que vai durar mais e com maior controle sobre todo o processo, para que você possa se aproximar do resultado que procurou no desenho ou na maquete.

Logo que iniciamos nossa conversa, falamos um pouco da obra do Lelé, (onde?) que eu admiro muito por sua coerência e pelas respostas que dá ao que lhe é proposto. É um arquiteto muito necessário ao nosso país. Mas quero trabalhar a arquitetura industrializada de forma mais flexibilizada, semelhante à montagem de um computador, podendo comprar componentes variados para compor sua obra de acordo com suas necessidades e o resultado formal desejado. Este concurso que nós ganhamos de habitação de baixo custo, não é um processo só para o “baixo custo”, diz a mesma coisa (o que? Qual a relação?) só que se compara mais a um automóvel.

Desde Abadiânia, quando o Lelé começou a fazer as pequenas escolas que depois foram feitas em Salvador e vários outros locais, depois os Sarah Kubitschek, depois o Collor e todas essas coisas, ele conquistou e domina fantasticamente tanto a tecnologia dos painéis que formam sua arquitetura como a própria arquitetura cujos espaços são muito ricos. Eu só acho que ele deve sofrer um pouco, porque como é ele que domina o processo inteiro, ele que produz e desenha as peças todas, os resultados são sempre as mesmas peças colocadas de forma diferente, sempre as de curvas que fazem o hall, as peças de ventilação, de captação de vento, de captação de luz zenital. Eu estou falando de um sofrimento que é sempre estar fazendo, num processo industrial e sem pejorativo, um fusca.

O que imaginamos é um processo industrial que produza uma espécie de chassis que pudesse ser usado para fazer um fusca, um golf, um gol, uma parati, um audi. Ele vai ter que abrir esse processo uma hora, permitir que seja preenchido por outros tipos de painéis ou outros tipos de tecnologias. Para aproveitar o processo que já está garantido e oficializado como bom e dar chance a outras pessoas de utilizar esse processo com linguagem própria. Precisamos que o mercado saiba disso e passe a produzir peças de tal forma que, aproveitando o chassis do Lelé, a gente possa aproveitar de tudo que ele já conquistou, utilizando isso da forma que nós vemos e não só da forma que ele vê..

Panet – Eu não acho que ele faça isso só da forma que ele vê, ele não tem essa imposição na obra dele. Eu sinto que ele esta só nessa pesquisa. Se houvesse uma união maior, um interesse nesta arquitetura social, um apoio do mercado, dos governos, com certeza os resultados estariam mais avançados.

Quando ele fez os CIAC´s, em todo lugar é igualzinho.

Panet – Mas ali, houve problemas. No segundo protótipo ele se afastou do processo, por questões políticas. Todo o processo e a qualidade estavam perdendo o controle, e a construtora que retomou o processo desvirtuou muita coisa do seu projeto.

Independente disso, é um processo industrial que foi repetido à exaustão. Eu chego no Sul da Bahia ou no Norte, e é igualzinho. Então deve-se mudar o processo para que não ocorram novamente esses erros, independente se ele controlou ou não, que não é tão simples, como sabemos, controlar um processo desse na mão de uma pessoa como o Collor e seu staff. Ele deve ter ficado apertadíssimo nesse processo.

Panet – Eu fiz justamente uma pergunta sobre isso. Quais eram as preocupações dele com relação às particularidades culturais e climáticas de cada região onde o CIAC seria implantado, já que virou nacional. Este projeto foi inicialmente feito para o Brizola no Rio de Janeiro, depois o Brizola tentou trocar por verbas para construir a linha vermelha, aí o projeto tornou-se nacional, e foi incorporado no projeto “Minha Gente” de Collor. Ele disse que realmente haviam novos estudos para adaptar o projeto a cada região, contudo ele não conseguiu completar todo o processo por diversos motivos e questões políticas e administrativas.

Mas os Sarah Kubitschek são os mesmos em todos os lugares do Brasil. Não estou falando que é ruim, estou falando que ele sozinho, e você sabe disso, não consegue diversificar tanto uma idéia. O que nós precisamos é de uma consciência geral, para que apareçam outros sistemas, não é só uma variação do sistema do Lelé. São necessários outros sistemas para que você abasteça o mercado com outras possibilidades e cada região possa ter sua forma de abordar um sistema industrializado. Isso deve ser de tal forma colocado que possamos chegar ao ponto de termos estruturas metálicas fechadas com painéis de babaçu aqui e madeira de pinho, não sei onde, em Porto Alegre por exemplo, só pra exagerar. Mas eu acho que deve ser difícil tocar um processo dessa forma sozinho e acho que a forma como ele o está conduzindo é fantástica, já fez milhões de coisas. Por isso a gente precisa disseminar esse tipo de construção para que ela possa ser aproveitada de todas as outras formas possíveis.

Panet – Formação Profissional

A escola não forma arquiteto, a escola te ajuda a ter uma espécie de caminhar pedagógico para poder reagir e correr atrás das coisas que vão te colocar, conhecer os vários processos, as idéias que já foram utilizadas, e incorporar isso ao seu conhecimento. Talvez a partir daí você possa começar a fazer arquitetura.

Arquiteto é uma palavra meio estranha, por que na verdade você vai passar a vida inteira se formando para ser arquiteto, mas existem algumas coisas que podem ser feitas. Por exemplo a grade curricular dever ser um pouco fluida, um corpo fixo e a partir do qual você criar uma base completada por professores visitantes, que fizessem um rodízio nacional, mundial, ou encontros, congressos, bienais. Só que essas pessoas teriam que ter mais tempo para que houvesse diálogo. Resgatar alguns processos do desenho como expressão de linguagem, tentar que a escola liberte de novo essa coisa de poder representar inclusive emoções através do domínio do desenho, o desenho que permita expressar o que você deseja colocar no projeto.

Outros procedimentos: domínio do computador, da maquete, de falar, de escrever. Tudo que possa te auxiliar e auxiliar a escola de forma a te estimular. Não esquecer também as matérias técnicas. Elas podem não ter a princípio uma utilização imediata, mas elas são sempre limiar, se você domina um pensamento matemático, físico, você vai incorporar isso ao seu processo, mesmo que de forma subliminar, mas é fundamental que o arquiteto também tenha esse conhecimento na sua temática, da conta, do custo ao discurso.

A filosofia se aproximou da física, da matemática com muito mais velocidade do que a arquitetura, que deveria estar junto delas há muito tempo. Então aproveitar, já que tem alguém abrindo estas portas, e correr atrás da filosofia, e aí que você vai descobrir os textos humanísticos dos grandes filósofos. É descobrir por que a arquitetura é importante. Arquitetura é muito mais importante do que a filosofia, que quase sempre se apresentou analítica e para ser analítica com positividade precisa ser alimentada, um dos seus alimentos é a arquitetura e sua atuação frente à sociedade, registro de época e todas as outras coisas. Por isso que se descobriu que a passagem do homem do canteiro de obras para o projeto foi devido a novas ferramentas que possibilitaram o desenho técnico, a perspectiva, a representação anterior da idéia a ser construída posteriormente, isso deu uma reviravolta em todo o universo da época, e hoje isso é muitas vezes esquecido. Os caras de 1300 já sabiam disso e nós, com toda essa metideza de Terceiro Milênio, estamos esquecendo o que é inerente.

Existem 500 mil possibilidades, o holístico procura voltar ao campo para poder ser estimulado por várias outras facções que não estariam no processo intelectualizado. Mas é claro que há no processo alguns tipos de situações nas quais não dá para esperar holisticamente bater algum tipo de estímulo quando você está fazendo o projeto, como um hospital por exemplo. Todas essas experiências precisam ser aproveitadas e elas só são possíveis se você, dentro da escola, pode ter um maior campo para o sonho, viagens possíveis e impossíveis. Aproveitar da escola e exigir da grade e dos professores que esse espaço seja aberto, não permitir a chegada de um novo manual, uma cartilha. Você tem que contribuir para essas questões todas, devolver esse estímulo que a escola está te provocando e isso vai te dar, depois de quatro ou cinco anos, condição de começar a pensar na arquitetura mesmo, como uma matéria efetiva. Um dos caminhos é dentro da escola participar de concursos estudantis, em equipes onde você vai descobrir como trabalhar com um arquiteto mais criativo, outro mais pragmático, mais racional, outro mais técnico. Formar esses grupos, descobrir que a arquitetura é o resultado dessa multidisciplinaridade, dessa mistura de conhecimentos, que pode ser testada dentro da escola.

Fazer estágios em escritórios onde você tenha afinidade com o tipo de arquitetura que é feita é outro caminho. Dizem que quem passa pelo meu escritório tem dois cursos de arquitetura. Eu acho um pouco forte, mas ali dentro uma das primeiras coisas que mostro é um contrato de trabalho, depois uma carta de direitos autorais, para saber que temos direitos garantidos, que temos que fazer direito para valer esses direitos, fazer alguma coisa que valha a pena ser preservada. Depois entender um pouco desses processos mecanizados de Autocad, do desenho e da maquete projetuais e tantas outras. Somando isso, na hora que achar que está pronto e virando arquiteto porque já saiu no convite de formatura, tem que fazer como o Álvaro Siza fez: começar pela cozinha da tia, o hall do vizinho, o galinheiro do amigo. Neste momento percebe-se como é importante saber da galinha, já que quem não entende de galinha não consegue fazer galinheiro. Quem não sabe nada sobre culinária não consegue fazer cozinha. Quem não sabe nada sobre segurança não consegue fazer um hall de prédio e vai por aí. É necessário um monte de coisas para começar a fazer pequenos projetos, imagine quando forem imensos, incorporando tantos outros conhecimentos, trabalhando com grandes equipes, absorvendo aquilo tudo. O arquiteto será o maestro dessa grande orquestra. Tem que estudar a vida inteira, todas as manifestações possíveis, não só as arquitetônicas, mas as técnicas, artísticas e tudo que compõe o universo de um arquiteto.

Panet – Você não acha que, uma vez formados arquitetos, estes profissionais deveriam passar por uma atuação gradual progressiva de complexidade de projetos? O que me preocupa é o fato de um arquiteto recém formado poder fazer tanto um galinheiro quanto um hospital geral. Não existe uma conquista profissional regulamentada, o que evitaria uma série de absurdos.

Se você roubar uma galinha, você contrata um advogado de 4 anos de formado, se você roubar um elefante, contrata de 6 anos. Agora se você der um tiro no amante de sua mulher tem que contratar um excelente advogado se não você está frito.
 

Panet – Mas é o que eu digo, essa seleção fica a cargo só do mercado.

É, mas tem outros mecanismos. A mesma coisa acontece com o médico. Quem vai operar do coração não vai chamar um médico de dois anos. A França conseguiu resolver este problema. Todos os projetos, a não ser os particulares, são feitos através de concursos. Você só pode participar de concursos de certo porte se você já tiver projetos publicados semelhantes ou se já tiver participado de concursos menores. Então o arquiteto recém formado começa fazendo uma pracinha no interior, uma casa, um prédio de dois andares, particulares ou por concurso, e vai subindo na categoria. Hoje existem grupos que estão fazendo o Parlamento Europeu e há dez anos davam suporte aos concursos de Jean Nouvel para se habilitar. Eles se colocam, no mercado em cima de uma capacidade X e a partir dessa leitura são convidados a fazer concursos de maior parte ou até serem arquitetos convidados para grandes concursos, como foi o caso das obras de Miterrand para citar apenas um país.

No Brasil o processo é invertido. O cliente não quer incorporar o projeto ao seu custo, não quer muita discussão com arquiteto, prefere contratar, independente do tamanho da obra, os arquitetos mais novinhos, que são mais baratos e não têm muita força de questionamento. Acaba que estes novos arquitetos negociam grandes obras com valores muito baixos.

A sociedade ainda não tem muita capacidade de julgar qualidade arquitetônica. O mercado qualifica o projeto muito mais pela vista, pela proximidade de acesso a um supermercado, e a arquitetura nunca entra como um componente qualitativo, a não ser com algumas reservas que foram feitas por exigência do próprio mercado. São deformações muito difíceis de serem revistas. Os próprios arquitetos vão ter que tomar uma decisão e se tornar realmente uma classe para que possam se expor mais no mercado, para que as pessoas saibam para que viemos e para que nossos honorários possam ser incorporados num custo de projeto – do pequeno ao grande – como um custo efetivo, necessário. A partir daí, formar trincheiras, conseguir ser representativo como classe a tal ponto que as pessoas permitam essa gradação profissional. Os arquitetos devem passar a ser chamados por haver motivos para serem chamados, para cada tipo de projeto. As respostas vão ser muito mais competentes e a arquitetura vai passar a responder não só como uma manifestação rápida de mercado, mas como uma seqüência de inserções acontecendo na cidade. Provavelmente, vão haver inserções mais criteriosas, com visibilidade maior, nos estimulando a comparar, ver, sentir, que ali está sendo feita uma coisa pensada, através de um processo que deve ser percebido pela sociedade que contrata os arquitetos. Só se consegue isto publicando, escrevendo, indo para a televisão, falando, dando aula.

 

Entrevista com o arquiteto Sylvio de Podestá realizada pela arquiteta Amélia Panet

(Publicada no livro Projetos Institucionais, AP Cultural, 2001)

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