(Texto publicado na Revista Palavra)
Sylvio E. de Podestá
Quando se ouve a palavra tombamento ou preservação, meio mundo se esconde. O desconhecimento sobre o valor de nossa história, pública e privada, gera desconfiança, medo e atitudes extremas como demolições noturnas ou descaso. A necessidade do conhecimento e a discussão sobre este assunto nos leva a pensar que nossos avós só tem valor quando herança fastuosa.
Alguns fatos, atitudes, críticas e propostas estão relatadas abaixo. Abre-se assim o espaço para o debate. Para a Palavra.
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O mundo nunca preservou o passado a não ser por acontecimentos fortuitos. Fatos não necessariamente previstos são os mais importantes elementos de preservação da nossa história, muito mais do que iniciativas particulares ou governamentais, mesmo sabendo que o institucionalmente preservado conta com a inestimável luta de alguns órgãos específicos como IEPHA, Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico, entre outros.
Podemos dizer que fatores como o isolamento físico e político, o respeito do colonizador sobre o colonizado (raro), decadências econômicas, descentralização dos “centros”, fim de economias extrativistas (substituídas ou não por economias industrializadas que se localizaram em regiões não historicamente tradicionais), brigas familiares, sótãos, gavetas emperradas e outros são, algumas vezes, mais efetivos do que a preservação por idealismo ou amor ou memória.
Havana, a capital cubana, por exemplo, é o maior monumento vivo, intacto, de uma cidade de 40/50. Uma estagnação política e histórica, por causas canhestras, criou um dos maiores monumentos antropomórfico-arquitetônicos que, aparentemente sucateado é de uma riqueza sem par.
Cidade de Salvador, Bahia, permaneceu com seu incrível centro por ter sido rejeitado, por ter sua ocupação se estendido por outras orlas, longe das mazelas, da podridão de uma prostituição física e moral. Repintado após expulsão dos indevidos, faz a festa dos convidados – louros, na maioria das vezes.
Ouro Preto, também é um bom exemplo, deve a BH sua permanência física, ao esquecimento que alguns atos e decretos semi-sacralizaram ou à incapacidade financeira imediata dos proprietários que vão, vagarosamente, carcomendo-o por dentro. É óbvio, hoje, cozinhar com gás liquefeito de petróleo.
Pelourinho, centro do Recife, Rio Antigo restaurados. Este procedimento é uma espécie de salvamento literal de uma parte física da história que, salva, é preenchida por comércios alternativos e folclóricos. Só bares e restaurantes e algumas padarias suportam tantas paredes descascadas e mofadas. God save the brick!
Devemos ter consciência quando tratamos do passado.É detestável apenas seu culto. É imprescindível, é claro, a história do passado, mas não em forma de pirâmide egípcia apinhada de japoneses, americanos e arquitetos, tentando compreender como eram inteligentes estes egípcios, ou os nossos portugueses, holandeses, espanhóis nestes paralelos abaixo do Equador.
A imagem de um bando de norte-americanos visitando Quéops, Quéfrem e Miquerinos e, pacote vencido, voltando para suas casas de bricolagem –não sem antes, no Cairo, se fartarem de big macs e pizzas huts, cokes, assustados com a cólera ou coisa assim, numa sábia decisão de gastarem seu dinheiro entre si– é uma forma apavorante de ver o passado.
Mas este é um passado de 5 mil, 3 mil anos A.C.. E cidades como Belo Horizonte? Como ter história (física, arquitetônica) em cidades como BH e preservá-la? Provavelmente em escala 1:100. Esta é a escala da nossa memória 1:100 anos. Guarda-se a história da cidade em contos e versos, pinturas e estampas. Guarda-se a arquitetura da cidade em escala 1:100.
O estímulo que uma reprodução em escala reduzida causa a todos é maior do que o do edifício –se existente– em questão. Virtualiza-se sua presença dando-lhe imagem ou porte conveniente com o embalar de uma criancinha ou bichano ronronoso. Percebe-se ali carinho, devoção, cuidado para não quebrar ou empoeirar, fenômeno humanamente estranho. O objeto é mais valoroso do que a sua origem, seu original.
Ninguém troca seu cachorro por uma criança pobre, mas ouvindo a música sente-se lá no fundo que a idéia é boa e ficamos assim, sentindo da chatice inconveniente desta criança pobre ou desta casa velha, milenar, gotejando nas trovoadas de dezembro, janeiro e fevereiro. Ninguém gosta de casa ou de cidade velha. Quem gosta de cidade velha é turista.
O mundo velho é um pastiche hipócrita que preserva grandes monumentos católicos ou da realeza e rodeia-os de coloniosos, mediterrâneos, enxaiméis ou amorfos. Museu da redução é uma solução. Virtualização da memória, sem culpa, visitável nos períodos de baixa temporada –turística e saudosista– e, de preferência na escala 1:100.
A memória da cidade deve ir além da arquitetura de seus prédios ou do seu urbanismo. “A cidade é sempre resultado do confronto entre forças díspares e, por vezes contraditórias: há sempre o convívio de obras planejadas e espontâneas, de coisas novas e velhas, de beleza e fealdade, do funcional e do inútil, do regional e do global, da cooperação e do conflito, de tal maneira que o caos urbano revela-se a mais notável representação do caos humano”, diz o sociólogo mineiro Euclides Guimarães.
“Se a cidade é um pedaço do mundo, completa o arquiteto baiano Almandrade, suas imagens são enigmas que, ao tentarmos decifrá-las, lançamos sobre elas nossas interpretações subjetivas. (…) É preciso dizer que por trás das imagens oferecidas à objetividade do olhar, existem outras que são aquelas instantâneas, surgidas da relação direta do sujeito com a cidade, principalmente quando em devaneio”.
A arquitetura e o urbanismo usam muito da visão, do racional e serão sempre racionais se não levarem em conta outros aspectos do envolvimento com a sociedade a que pertencem. “Se realmente quisermos entender a cidade não podemos prescindir da visão que desperta mais imediatamente a razão; do sistema gusto-olfativo que desperta preferencialmente a memória (Proust se refere ao despertar da memória pelo cheiro e gosto da Madeleine); do sistema auditivo que desperta cima de tudo a emoção e do sistema tátil que atinge a confiança”, relata o urbanista Rodrigo Andrade.
“Desta forma conseguimos ampliar a percepção de atributos sensoriais de um lugar urbano, tais como leveza, dualidade, horizonte sonoro, odores, vitalidade, multiplicidade, conforto, aconchego, receptividade, identidade, etc., mais próximo da poesia do que do urbanismo”.
Percebido que a memória é caos, devaneio, cheiro, gosto, relatos, foto na parede, não nos importa a casa dos Haas na Rua Alagoas, em briga com o Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de Belo Horizonte – que luta para conceituar a preservação em BH- se nem a família a quer. Coloque-a na escala 1:100, dentro de uma redoma junto ao piano que ninguém toca mais, naquela nova sala do apartamento de vidros espelhados comprado no mercado líder. Junte a ela um álbum de fotos dos bons e maus momentos ali vividos, em tamanho postal, permita o acesso aos historiadores, permita fotos para as edições João Pinheiro e está completo o tombamento documental.
Em favor disso nasceu o projeto Bar do Ponto, esforço leigo do maquetista/artista Aristides Lourenço, composto de 13 edifícios memoráveis de BH, demolidos por seu donos ou por seus governos. Se os proprietários não queriam, ironicamente também não nos interessa. Mas estão aí, 1:100. 1:100 anos.
Quando Belo Horizonte fizer seu bicentenário, passamos a memorizá-los em escala 1:200, 1:500, 1:1000, até não percebermos mais sua história, sua forma. É assim que é a vida. Guardamos dos nossos avós os livros, não sua casa. Visitar a casa de Drummond em Itabira não significa visitar seus poemas.
A arquitetura deve mirar o futuro. Deve-se fazer arquitetura hoje para no futuro podermos ter o que guardar em escala 1:100, merecida. Se não, melhor usar grandes lunetas Hubbler para entendermos nosso passado, ao longe, em escala 1:100 anos luz.
Não se pode mais contar a história das cidades por sua arquitetura. Não se pode nem mais contar a história das personalidades e dizer da arquitetura que ocupam. Mesmo nossos maiores artistas –músicos, plásticos, literatos etc– não moram em espaços arquitetônicos mensuráveis.
Voltamos à sobrevivência do abrigo, agora pretensioso, ou da casa no condomínio rural/urbano, longe das referências urbanas e cheio de pequenos plugs saudosistas, inclusive o ar puro e os passarinhos.
Remetemo-nos novamente ao passado. Estabeleceu-se em Curral Del Rei uma nova capital há 100 anos, preservou-se um exemplar de casa de fazenda e a transformaram em Museu –o Abílio Barreto. Cem anos depois, constrói-se seu anexo para guardar sua memória. É o museu do museu. Historicamente, o anexo é mais importante, preserva o próprio museu, diz dele e condiciona a memória em espaço apropriado. O outro, o antigo, reformado anualmente, suprimindo-se goteiras e mofos, vai sendo reduzido a sua própria presença, transfere-se o passado para seu ataúde de vidro e concreto e o visitamos. Civilizadamente apropriado.
Já a rapadura, o pequi, o cajú-do-campo, o jequitibá, memórias renováveis, vivas, cheirosas, completamente presentes, estão a queimar. Não é possível compreender!
Cidade velha é coisa para turista. Memória é coisa nova, mesmo 1:100. Ipê e quaresmeira que não florescem não servem como história, independente de sua idade, a não ser que, sob sua sombra, Pedro Nativa tenha escrito alguns dos seus escritos. Cortamos e os substituímos por jovens exemplares e esperamos, certos, sua futura floração. A história continua.
A cidade morre de medo de cortar seus ipês arquitetônicos na dúvida de que os novos plantados não correspondam à performance consagrada. Preserva-se então, mesmo sem flores, troncos corroídos, numa subsistência acultural de não poder compreender um futuro sem as flores conhecidas. Sofre-se muito mais com a insalubridade arquitetônica do futuro do que com a perda do passado. Por isso o pastiche. Por isso a noiva de branco, o terno preto a 34º C., a cota do Minas Tênis Clube. Por isso a memória na escala 1:100.
Memória é mercadoria. Pedaço da cruz de Cristo, sangue milenar do Santo Sudário, Van Gogh a 30 milhões. Morra Benja, tenho quadros seus!
O texto permanece, não é objeto. Mas o livro, capa dura, edição X, vale Y, mais que o texto. A casa onde foi escrito o texto passa a ter valor extrafísico –no Bar do Lulú já morou o pai de Guimarães Rosa– e, olhem, com a quantidade de Diadorins que tivemos por lá, nos parece mais importante a memória do Lulu do que a do pai do Guimarães.
Lulu, é nossa memória; Lucas, de outro tantos. O Maleta não agüenta meio discurso arquitetônico mas guarda meio Belorizonte. Estranho este mundo de 100 anos, de Rua 24 horas, como se a Rua da Bahia alguma vez tivesse dormido. Estranho mundo que oficializa um mundo onde existia um “Sapo” gritando “on line” o que ia pelo mundo. Onde existe um comunista milenar tombado, um filé a cubana proibido de estar no cardápio da repressão. Isto só se escreve na escala 1:1 e em tempo real.
Já para a arquitetura, a escala 1:100 se mostra ideal. Café do Ponto, Cine Metrópole, Feira de Amostras, Estação de General Carneiro, Estação Ferroviária, Correios e Telégrafos, Café Acadêmico, Cine Odeon, Café Estrela, Igreja Metodista, Escola de Medicina, Escola de Direito: bem-vindos à memória local e nacional. Em escala 1:100.
Publicado na Revista Palavra