Arquiteto: Sylvio E. de Podestá
Colaboração inicial: Berenice Nogueira Santiago e Gaby Aragão
Local: Bairro do Brás, São Paulo, SP
Texto: Carlos Alenquer
Maquete: Paulo Roberto | Projeto: 1990
Área do terreno: 6.712,00 m2 | Área: 8.700,00 m2
* 1º Prêmio em Concurso Nacional promovido pela Prefeitura de São Paulo, Governo Erundina e o IAB/SP.
Lojas, roupas no varal, estacionamentos, feiras, quartos de pensão. É a Vila do Brás.
Memorial justificativo, ou: pressuposto da harmonia desejada.
Ainda bem que o mundo gira e a lusitana roda: chega um dia, fatalmente, e certas propostas se esgotam. Exemplo maior, no caso, é a chamada arquitetura das casas populares (ou, mais eufemisticamente, Conjuntos Habitacionais para População de Baixa Renda).
Arquiteturas que a iniciativa deste concurso põe em cheque com seu significado bastante emblemático: concurso que não vai resolver, aqui e agora, os problemas habitacionais do Município, do Estado, do País, mas que poderá, ao fim e ao cabo, deixar no mínimo corados os nossos vizinhos para nos situarmos numa geografia próxima e, como onde cresce e se esparrama, chegar em outras praias da arquitetura brasileira, de Norte a Sul do Pindorama, País do Futuro (só para citar Oswald em seu centenário…).
Para nós, o concurso é uma proposta clara e completamente possível de se adaptar às modificações geridas pelas necessidades e experiências do dia a dia. Em outras palavras, o concurso representa a possibilidade de se hierarquizar, com o passar do tempo, as diversas funções de cada área do conjunto, otimizando o seu aproveitamento e encontrando o mais avançado papel de cada espaço no conjunto. Com isso, deixa-se em aberto para a comunidade a própria discussão futura desta hierarquização dos espaços (este fica melhor com esta atividade, aquele melhor com esta, etc.) o que, mais uma vez, trará novos benefícios. Assim, a associação, a mini-prefeitura, funcionaria como guia suporte. O que é bem diferente de comendo.
Essa faculdade a de criar a melhor qualidade de vida deve em verdade atribuir ao morador a sua própria coordenação. O que chamamos de harmonização do projeto é exatamente isso: a faculdade que o poder tem de criar as condições e o usuário de criar a harmonia, aproveitando da melhor forma seu novo espaço.
As formas de harmonia nas funções sociais a que o projeto se propõe foram divididas em duas. A primeira harmonia na atividade que possa unir as formas de ação, desde a sua concepção, seu custo e seu funcionamento produtivo. A segunda se divide em pelo menos sete sub-itens, e diz respeito à harmonia do corpo agrupado com funções que vão se desenvolver com suas características próprias “do melhor” e do “mais usados”.
Uma: Comunicação. Ajudando a promover maior conscientização, informações e relações; o atual Brás.
Duas: Ideal. Criatividade, correta orientação da vontade comunitária.
Três: Crescimento. Utilização dos espaços, estética, qualidade de vida.
Quatro: Finanças. Avaliação, correto valor.
Cinco: Movimento. Comércio, transporte, troca e distribuição.
Seis: Materialização. Produção, execução.
Sete: harmonia. A realização.
O projeto, ou: Sonho Paulistano
Seis mil, setecentos e doze metros quadrados de área. Escrito assim por extenso, o desafio fica maior ainda. Um grande desafio, e muito peculiar: proximidade física com o metrô, divisa com áreas da prefeitura e praças, frente para a Rua Coronel Mursa com assentamentos característicos do bairro, frente para a Aristides Lobo com Cohabs verticais, áridos. Dessa vizinhança, tiraremos nossos sonhos.
São estes repetimos olhando o terreno os 6.712,00 m2 que temos para fazer uma primeira experiência, um primeiro processar que certamente provocarão revisões em posturas e concepções. Parece retórica. Parece. Afinal, são 6.712,00 m2 em pleno Brás, na maior cidade da América Latina uma América solidária na miséria, buscando desesperadamente caminhos que encham suas panelas de comida e as paredes de suas casas de alegria. E isso não é retórica.
Em suma: são seis mil, setecentos e doze metros quadrados de muita importância. Nestes metros, imaginamos a nossa cidade, a nossa vila, cidade-vila, a vila-cidade, a Vila do Brás. Cidade no sentido da complexidade das relações e trocas de serviços que ali se efetuarão; vidas que participarão de um conjunto que se pretende harmônico não cidade como ilha isolada de todo o entorno macro do Brás e da própria metrópole.
Áreas de lojas apoiadas sobre o solo plano e, internamente, garagens. Com isso, estabelecemos um dos princípios que norteiam o projeto: seja para a venda ou para o aluguel, estacionamentos e lojas podem ser um grande recurso adicional em termos de renda, considerando pelo menos dois pontos básicos: Um, a proximidade do metrô e a necessidade que moradores das regiões próximas têm de deixar seus carros em locais seguros. Dois, o crescimento populacional da micro região que não foi acompanhado pelo crescimento paralelo dos serviços (e aí, as lojas chegam como ofertas de maior oportunidade).
Acima, como teto, ruas internas nos conduzem a pequenas moradias simples e duplex, com 30,00 m2 cada; a uma pensão, 4 pequenos edifícios de 4 andares, creche, reuniões. Uma vila urbana, com ruas de pedestres, onde atividades como telefonar para o serviço do marido, namorar, descansar, fazer feira, comprar jornal, footing são reencontradas, curtidas, com todo conforto: instalações sanitárias públicas estão ali colocadas. Vila-cidade que se volta para seu interior, denso de significados em suas relações físicas, psicológicas tudo isso bem ao lado das riquezas urbanísticas da região: o transporte, a praça, a outra rua, lá fora. Interior e exterior com opções fáceis é só dar um pulinho que você chega lá. Ou cá.
Com volumetria variada, não tentamos repetir a tipologia do Brás (frente para a rua Coronel Mursa e menos ainda pela frente da Aristides Lobo). Pareceu-nos correto fazer uma arquitetura onde as funções são lidas, desmassificadas, coerentes. Volume enquanto casa, enquanto prédio, enquanto comércio, enquanto instituição. Cores, telhados, portas e janelas.
Idéias, muitas idéias para o futuro novo, que devagar acreditamos poder/dever construir. Idéias que serão desenvolvidas no processo enriquecido por novas informações, ângulos diversos, percepções e sutilezas de insigths provocadores. Agora que estamos mais perto da experiência definitiva, com muitos retornos, análises, acertos e erros que fazem parte de toda criação, acreditamos que a abstração inicial, ordenação dos diversos elementos, o primeiro desenho, um primeiro orçamento – nos deixa mais próximos da realidade. Do sonho da harmonia no Brás paulistano.
Quantitativos, ou: Números Frios, Realidade Quente.
231 habitações, entre casas planas, duplex, apartamentos e quartos de pensão (hotel). 1.631 m2 de lojas. 3.666 m2 de estacionamentos.
Para um terreno tão especial, de custo elevado, sugerimos que os promotores discutam, junto aos arquitetos e à comunidade, como serão repassados estes custos, ou seja: o que é gerador imediato de renda para custos imediatos e para custos a médio prazo, e, mesmo, os permanentes. Como a mini-prefeitura terá recursos independentes, ou junto à comunidade, para gerir sua cidade e ao mesmo tempo participar da grande cidade? Como não ficar só nestes 6.712,00 m2?
As respostas às indagações feitas aqui, a título de discutir o assunto, não podem ser dadas a não ser depois da decisão de experimentar. Só um exemplo: assentada ali a população, toda a área adjacente à prefeitura deverá ou poderá ser usada como consequência do trabalho dos usuários do Plano Brás. Essa possibilidade será a força e o incentivo de crescimento de que a comunidade necessita. Toda a organização e rendimentos poderão ser materializados na obtenção dessas áreas, desde que contribuam na coordenação do plano atual.
Outros bolsões do bairro poderão ser retomados (ver experiência na Cidade do Porto, Portugal). Fábricas fechadas ou decadentes se transformarão em simples e agradáveis moradias. Vilas serão recuperadas e repassadas. Edifícios inteiros readaptados.
Hoje, não sabemos exatamente o número de metros quadrados, habitações, populações beneficiadas, estacionamentos, casas, apartamentos, pensões que podem ser plantadas, a partir da Vila do Brás. Mas sabemos que por trás destes números, existe uma realidade pulsando forte, quente.
Técnicas Construtivas, ou: O Convencional Inusitado.
Não vamos propor aqui nem a autoconstrução nem a adição de técnicas sofisticadas de pré-moldagem ou pré-fabricação. Nossa construção é convencional.
Uma grande plataforma de concreto, laje fundida, em vãos econômicos de 5x6m, elevam do solo as moradias e criam, inferiormente, o comércio e as garagens.
De rapidíssimo prazo de construção, sua utilização, como geradora de recursos, é imediata se esta for a decisão. As construções superiores, com paredes auto-portantes de blocos de concreto, lajes pré-fabricadas, esquadrias de PVC e telhas de barro são construídas a partir do grande canteiro de obras (futuras ruas internas) por sete frentes de trabalho simultâneas. O Brás tem pressa: a rapidez construtiva dá o tom da urg6encia.
Depois, um bando de crianças correndo pelas ruas, tintas, vasos na janela, roupa no varal, conversas na esquina, jogos de dama. Paisagem convencional de Vila.
Segurança, ou: Para Quem Precisa.
Um capítulo curtíssimo: segurança é assunto da comunidade. É um conjunto fechado? Aberto? O projeto permite as duas possibilidades. Segurança não é cadeado. É conquista social.
Epílogo, ou: Estamos Começando.
A história do Brás nos beneficia com o seu especial interesse e atenção no presente crescimento. O que fizemos, neste projeto, foi simplesmente reproduzir objetivos dos propósitos extraídos da população local, da população de baixa renda carente, de estudos que alcançam uma visão de vários ângulos, conduzindo ao ponto máximo do aproveitamento.
O Brás precisa ser aproveitado como exemplo de viver bem. Este é o início das modificações a serem feitas e não apenas no Brás, em São Paulo, mas em todo o País. A Vila do Brás, em nosso entendimento, é a oportunidade que vai viabilizar o encontro do governo do empreendimento com o empreendedor. Este é um acerto claro, que servirá de exemplo. A Vila do Brás é essencialmente uma experiência com a firme determinação de conseguir uma resposta à questão da moradia das classes carentes.
A Vila, então, não é um lugar para indivíduos se automanipularem para a destruição, a marginalidade, a vida coletiva baseada em conceitos de agregação de interesses (conceitos antigos, aliás). Ela é baseada, em sua essência, nas necessidades dos homens se complementarem, tendo ou não um único ideal: a arquitetura tem a obrigação, particularmente nesta quadra da história do Brasil, de dar condições, conforto, liberdade para que cada um realize o seu caminho.
A Vila do Brás deve se complementar, tão logo seja possível, com o Brás existente. Os residentes dos prédios e cortiços na vizinhança, logo usufruirão das trocas de serviços e comércio, com todas as facilidades e oportunidades para a interação da população do Brás como um todo. Isso fortalece a comunidade, os laços de união, a solidariedade.
E o que a gente pode lamentar é, curiosamente, o que mais incentiva. Que pena que estejamos começando só agora, depois de tantas décadas de desacertos. Que bom que estamos começando.